Cidade de Deus
"Cidade de Deus" foi criado a partir de uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins (1997). Com roteiro de Bráulio Mantovani (Tropa de Elite) e direção de Fernando Meirelles (Dois Papas) e Kátia Lund (Central do Brasil), o filme foi lançado no Brasil em 30 de agosto de 2002.
O longa de Fernando Meireles e Katia Lund, conta a história de 30 anos de império do tráfico de drogas na comunidade localizada na zona oeste do Rio de Janeiro. O filme retrata uma comunidade na qual a violência massacra o dia a dia das famílias e atravessa as relações sociais e familiares.
No último dia 30/08, "Cidade de Deus" completou exatos 20 anos de seu lançamento. Para comemorar esta data tão histórica, decidi assistir (mais uma vez) este que é considerado por muitos (incluindo eu) como o melhor filme da história do cinema nacional.
A 'Cidade de Deus' é o nome de uma favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro surgida na década de 1960 para abrigar moradores de favelas removidas da Zona Sul. O então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, transferiu pessoas que viviam às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas para Jacarepaguá.
"Cidade de Deus" já é considerado um clássico do cinema nacional por toda a sua história e toda a sua influência. Um filme cru, seco, pesado, incômodo, verdadeiro, que traz uma representação muito fiel e realista da realidade das comunidades brasileiras que são dominadas pelo tráfico. A trama é construída com base no crime organizado no subúrbio do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1960 e de 1980, e traz uma abordagem da desigualdade social, da violência policial, da repressão e do descaso das autoridades, possibilitando a visibilidade da miséria presente naquele ambiente. Também temos uma releitura do "crime organizado" e a "carreira do tráfico", cuja narrativa acompanha exatamente as mudanças que acontecem na 'Cidade de Deus' e a chegada do crime organizado, especialmente o tráfico de drogas. O filme mostra como o tráfico funcionava, explicando que se tratava de um "negócio" extremamente rentável e aliciante para aqueles indivíduos, e principalmente para as crianças e adolescentes, que eram mais ambiciosos quanto ao crescimento no mundo do tráfico.
O roteiro de "Cidade de Deus" é sem dúvida um dos principais acertos do filme. O enredo cinematográfico também é perfeito, onde temos o desenvolvimento e a apresentação dos personagens que foram estabelecidos na história. Histórias essas que foram narradas pelo aspecto do Buscapé (Alexandre Rodrigues), que vai nos contando as histórias trágicas de vários habitantes da comunidade, seguindo também os seus esforços pessoais para realizar seu sonho: ser fotógrafo. Também temos a história de José Eduardo Barreto Conceição, ou Zé Pequeno (Leandro Firmino), antes conhecido como "Dadinho" (Douglas Silva). O bandido mais perigoso, mais desumano e mais temido do local. Um criminoso carioca da 'Cidade de Deus' entre os anos 70 e 80 que teve a sua história retratada de forma semificcional.
Todo o sucesso estratosférico de "Cidade de Deus" não reside unicamente nos seus aspetos visuais, técnicos e estéticos, mas também na mensagem social que o filme nos transmite, e principalmente por ser tratar de uma produção levada a sério, que exibe uma realidade intrínseca sobre uma violência extrema e sem nenhum pudor nas comunidades brasileiras. O longa remonta uma visão que mostra um Brasil que nem todos conhecem e poucos querem enxergar, literalmente dando a cara a tapa, colocando o dedo na ferida, exibindo a realidade podre dos nossos governantes e principalmente da polícia (como na cena que o Buscapé tira fotos do Zé Pequeno negociando com os policiais).
Toda narrativa de "Cidade de Deus" me remeteu ao clássico do Tarantino - "Pulp Fiction". Exatamente por ter uma essência, uma aura, uma montagem, uma estrutura, uma forma de contar sobre as histórias e os personagens, que por sua vez também tem uma violência extrema e explícita. Há quem diga que tanto o Meirelles quanto a Kátia podem sim terem sido influenciados (ou se inspirado) nessa obra-prima dos anos 90.
Em questões de elenco "Cidade de Deus" é completamente impecável!
Pra mim as duas melhores atuações são sem dúvidas de Douglas Silva e Leandro Firmino. Douglas traz a versão ainda criança de Zé Pequeno - o Dadinho. Uma atuação monumental, gigantesca, bárbara, bizarra, que me faltam palavras para descrever o tamanho da interpretação de Douglas Silva (com uma idade entre 12 e 13 anos). Dadinho era uma criança perturbada mentalmente, que já exibia uma psicopatia e um sadismo (vide aquela cena bizarra que ele mata todo mundo no motel a sangue frio e exibe um sorriso de engrandecimento). Leandro Firmino é o Dadinho - ops - Dadinho não, meu nome é Zé Pequeno porra! Uma fala que virou vírgula, virou gíria, influenciou toda uma geração, pois na época todo mundo usava essa fala em todos os grupos de conversas. Leandro Firmino tem uma entrega monumental ao incorporar um dos bandidos mais histórico do Rio de Janeiro, e ele dá um verdadeiro show de atuação do início ao fim da história - um rosto que ficou marcado para sempre na história de "Cidade de Deus".
Alexandre Rodrigues, que deu vida ao sonhador Buscapé, se destaca pela leveza e simplicidade em buscar o seu objetivo, o seu sonho, mesmo que pra isso ele tenha que arriscar diariamente a sua própria vida. Uma grande atuação de Alexandre Rodrigues. Alice Braga (Angélica) está irreconhecível com apenas 18 aninhos. Alice ainda jovem já nos mostrava todo o seu talento na arte de atuar, o que explica totalmente a grande atriz que ela se tornou hoje em dia. Seu Jorge (Mané Galinha) sempre se destacou nas produções nacionais e aqui não seria diferente. Seu Jorge entrega mais uma grande atuação, mais uma interpretação completamente impecável (baita ator). Matheus Nachtergaele (Cenoura) é mais um nome importante dentro do elenco, e ele entrega tudo e mais um pouco, principalmente nos embates com Zé Pequeno.
Ainda tivemos vários nomes do nosso cinema nacional que integraram o elenco de "Cidade de Deus" - como Phellipe Haagensen como Bené. Jonathan Haagensen como Cabeleira. Roberta Rodrigues como Berenice. Darlan Cunha como Filé com Fritas (já matei, já roubei, já cheirei, sou sujeito homem). Babu Santana como o Grande. Mumuzinho como Palito e Gero Camilo como Paraíba.
Tem uma cena que o Zé Pequeno encurrala as crianças e depois usa de uma violência extrema (uma cena pesada e doentia) que nos mostra a força de um elenco desconhecido. Pois grande parte do elenco de "Cidade de Deus" foi escolhido entre garotos que viviam em diversas comunidades e favelas do Rio de Janeiro e que não tinham tido até aquele momento nenhum contato com a arte de atuar.
Meirelles e Kátia trazem um poderoso trabalho de câmeras, nos evidenciando o tamanho das dificuldades que eles enfrentaram ao longo das gravações. Pois a gravação do longa se deu em três fases, a primeira parte do filme - a 'Cidade de Deus' nos anos 60 - foi filmada no conjunto habitacional de Nova Sepetiba, Rio de Janeiro. Embora o tráfico já tivesse chegado ao local, não tinha nenhum traficante tomando conta do lugar, o que possibilitou filmar com facilidade. A fotografia é crua, é seca, é morta, é desconcertante, acredito que essa era a principal finalidade da fotografia, nos elucidar sobre a realidade que estava sendo mostrada. Uma trilha sonora comunicativa, abrangente, contundente, que exemplificava todas as cenas do filme com uma qualidade absurda. O longa possui uma direção de arte inquestionável. Uma ótima cenografia. Uma ótima ambientação. Uma ótima montagem. Uma ótima edição. Tudo feito com muito cuidado, com muito detalhe, que só engrandecia a qualidade técnica da obra.
"Cidade de Deus" é um filme atemporal, influente, um marco na história do cinema nacional. O filme brasileiro que tem o maior impacto internacional - o mais conhecido, o mais lembrado e o mais respeitado mundialmente. Com todo o impacto e o reconhecimento que o longa teve, seria óbvio que ele receberia inúmeros prêmios e indicações nos festivais de premiações. O filme teve indicações no Prêmio ABC, no Grande Prêmio do Cinema Brasil, no Festival de Santo Domingo, no Festival do Uruguai, no Festival de Cartagena, no Festival de Marrakech, no Festival de Guadalajara, no Festival de Toronto, no Festival de Havana, no Prêmio Independent Spirit Awards, no BAFTA e no Globo de Ouro. Além, é claro, o Oscar - que nomeou o longa nas categorias Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Fotografia.
Apesar do longa não ter recebido a indicação do Oscar para Melhor Filme estrangeiro (que todos esperavam), Meirelles disse: "Ter recebido tamanho reconhecimento da Academia mostrou que o cinema brasileiro não se limita apenas a disputa de Melhor Filme estrangeiro".
"Cidade de Deus" é o segundo filme estrangeiro mais assistido no mundo. De acordo com estudo realizado pela plataforma online Preply, o filme brasileiro está em segundo lugar na lista de filmes estrangeiros mais vistos no mundo, ficando atrás apenas de "Os Intocáveis" (produção francesa de 2011). Em terceiro lugar está o filme francês "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" (2011), seguido pelo japonês "A Viagem de Chihiro" (2001) e o coreano "Parasita" (2019). O longa foi eleito o oitavo melhor filme nacional de todos os tempos segundo a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Também é o filme mais bem colocado na lista que foi produzido neste milênio. Está classificado em 5.º lugar na lista do Top 10 Melhores Filmes da década de 2000, segundo a lista baseada nas melhores notas do IMDB (que também o classifica como o melhor filme Latino-americano).
Apesar de já ser reconhecido como um dos grandes longas do país, o filme ganhou ainda mais reconhecimento este ano, após a participação do ator Douglas Silva no Big Brother Brasil. Afinal, o filme revelou o artista como o personagem Dadinho.
"Cidade de Deus" é, sem sombra de dúvidas, um marco da indústria audiovisual nacional. Uma verdadeira obra de arte do nosso cinema que fez e faz história mundialmente até hoje. Uma verdadeira obra-prima nacional e internacional. [09/09/2022]