A cidade se devora
por Bruno CarmeloDe acordo com Les Misérables, a integração social à francesa, ditada pelo sonho do multiculturalismo e da tolerância às diferenças, foi um fracasso completo. Ironicamente, o começo nos mostra uma possibilidade de comunhão, quando multidões assistem aos jogos da Copa do Mundo e vibram por uma França única, formada tanto por gauleses quanto por negros, magrebinos, filhos de imigrantes. Passado o idílio inicial, no entanto, o filme investe no que os franceses chamariam de “descida aos infernos”, ou seja, uma narrativa que se torna mais violenta e sanguinária a cada minuto.
O diretor Ladj Ly adapta seu próprio curta-metragem para mostrar os primeiros dias de Stéphane (Damien Bonnard) na brigada de polícia do subúrbio parisiense. Por constituir um ponto de vista externo àquele ambiente, o novato funciona como ponto de referência para o espectador médio, que se supõe igualmente chocado com esta gestão do caos nas periferias. Ao longo de 100 minutos, o cineasta e roteirista apresenta as guerras de poder entre diferentes facções, entre cristãos e muçulmanos, policiais e habitantes, crianças e adultos, homens e mulheres, brancos e negros. Cada microgrupo gerencia um bairro ou prédio, e qualquer conflito é encaminhado aos chefes das facções, o que implica numa evidente escalada dos enfrentamentos. Na cidade de Montfermeil não existe paz, apenas tréguas momentâneas entre o pressuposto da guerra.
Para retratar este universo de virilidade e agressividade exacerbadas, Ly opta por um estilo incrivelmente eficaz, ainda que moralmente problemático: a estética da urgência, com a câmera posicionando-se no meio das rodas de briga, no centro dos confrontos entre gangues, pulando de um rosto ao outro, focando-se nas poucas vozes que se destacam entre a gritaria e as balas. Em outras palavras, este é um território de imersão total que, ao invés de dar um passo atrás e analisar a situação – buscando causas, consequências, apontando para saídas concretas ou simbólicas – prefere se concentrar no presente absoluto, na sensação da captação ao vivo, no poder do choque que antecede o raciocínio. Este é o domínio dos sentimentos, do senso de sobrevivência, da ação e reação – ou talvez, melhor dizendo, a lei da selva, como comprova a metáfora do filhote de leão.
O mosaico é muito bem executado pelo diretor e sua equipe. O formato em scope serve a encher os olhos e a tela com o máximo de pessoas possível, enquanto a câmera gira em torno de um grupo para imprimir dinamismo e reproduzir a sensação de onipresença. Por mais que sigamos os conflitos pelo ponto de vista de Stéphane, a confusão do protagonista se transmite ao público com impecável captação e mixagem de som, uma montagem frenética e iluminação precisa em ambientes internos. Apenas uma cena importante entre Stéphane e Gwanda (Djebril Didier Zonga) decepciona rumo ao final, pelo desempenho fraco deste último quando a ação pedia uma entrega muito mais forte. Mesmo assim, é possível acreditar naqueles espaços, naquelas pessoas, em suas roupas e gestos: Ly transmite evidente conhecimento deste meio, falando como quem compreende as peculiaridades dos conflitos sociais, sem recorrer a maniqueísmos. Por mais que estes homens tomem atitudes questionáveis ao longo da trama, é possível compreender as reações de uns e de outros, o que dificulta o posicionamento moral ou o recurso a soluções fáceis.
Les Misérables constitui, portanto, a crônica-choque de um impasse. Ainda que o olhar do diretor seja empático e humanista, pode-se discutir o discurso puramente descritivo, capaz de constatar uma realidade sem argumentar a partir dela. O filme funciona para perturbar o público, ainda que não forneça qualquer válvula de escape, ou qualquer aceno simbólico a um desenlace (vide a cena final). Este tipo de discurso tão cruel quanto alarmista tem sido um forte responsável pela (necessária) tomada de consciência e indignação de sociedades contemporâneas quanto às injustiças. Entretanto, ele também pode ser responsabilizado por tamanha adesão a soluções agressivas, unilaterais e supostamente fáceis vendidas por políticos e líderes religiosos radicais.
Além disso, o tom inflamado poderia ser criticado por questões de ética: em que ponto a repetida imagem de uma criança maltratada deixa de se tornar um alerta para se transformar em instrumento de sadismo? Quantas armas e bombas são necessárias para que a violência deixe de ser um retrato cotidiano para se tornar um fetiche do mundo cão? Até que ponto a crítica da violência não se transforma em prazer da violência via intensificação? A partir de que momento o discurso passa a tacitamente explorar aquela miséria que pretende denunciar? O título, inspirado em Victor Hugo, desperta uma questão retórica: quem são os verdadeiros miseráveis neste contexto em que policiais e habitantes, ou membros de diferentes facções – todos pobres, a maioria negra e filha de imigrantes – se destroem entre si, alheios aos olhares da burguesia?
Por fim, o filme arma uma bomba-relógio impressionante, para então jogá-la no colo do espectador e dizer: faça com ela o que quiser – ou puder. A atitude funciona como provocação, é claro, e não seria espantoso se o resultado angariasse uma multidão de fãs pelo poder de sua denúncia. Ainda assim, seria importante questionar: o que acontece depois? Montfermeil foi sempre assim? Como surgiram estes grupos armados e conflitantes? Algum policial optou por saídas diferentes daquelas adotadas por Stéphane, Chris (Alexis Manenti) e Gwanda? Estamos condenados a testemunhar este círculo vicioso se reproduzir indefinidamente? Talvez o efeito colateral desta produção seja uma forte ressaca. Mas que tipo de transformação ela pode causar, uma vez passado o enjoo?
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2019.