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    Severina
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Severina

    A mulher que furtava livros

    por Taiani Mendes

    Aclamado por suas montagens teatrais, Felipe Hirsch voa solo pela primeira vez no cinema em Severina, adaptação do romance homônimo de Rodrigo Rey Rosa. Estrelado pelo argentino Javier Drolas, que havia trabalhado com o realizador na série A Menina Sem Qualidades, a aventura literária guiada por delírios amorosos tem o mesmo tom melancólico de seu protagonista, um livreiro jamais nomeado que aparece nos créditos como R. Ele tem uma charmosa livraria de esquina, onde também mora, e ocasionalmente recebe leituras que lotam o espaço. Num desses eventos vê pela primeira vez a mulher que futuramente roubará seu coração, interpretada por Carla Quevedo. Sua rotina é ficar lendo no balcão à espera de clientes, até o dia em que tal mulher reaparece, furta um livro e sai. Encantado e intrigado, ele aos poucos vai reorganizando sua até então pacata vida em virtude da misteriosa paixão, ilustrada por trechos de publicações.

    “Que poder tem o amor senão perdoar?” é a frase que abre o longa e orienta a obsessão do dono da livraria pela bela ladra. Querendo que ela continue visitando seu estabelecimento, ele inicialmente não a interpela e mesmo quando o faz é por interesse em conhecê-la e não recuperar prejuízos. Solitário e entediado antes do aparecimento de sua musa, ele se entrega de corpo e alma à captura do lampejo, como um leitor que não consegue parar de ler o livro que acabou de abrir. R, no entanto, é mais do que um consumidor e comerciante de literatura, é um aspirante a escritor. Ainda que mal apareça escrevendo, Severina é praticamente uma criação sua, a fantasia perfeita de um bookworm sem graça: jovem, bela, leitora voraz, excitante, criminosa, perigosa, independente, imprevisível, manipuladora e por vezes frágil.

    A relação dos dois se dá puramente por necessidade, ela de livros, ele de uma agonia romântica, e ao diretor não interessa revelar os segredos da personagem feminina, que é para o filme a mesma figura enigmática que é para o protagonista. O público fica entre o ponto de vista dele e o lugar privilegiado de testemunha de sua perdição num sombrio e encantador labirinto literário – cena que inclusive faz parte do longa-metragem – que tem como alternativa a total solidão das ruas vazias.

    Além dos dois, a livraria é parte importante no relacionamento e não é por acaso que o filme piora quando ela é “substituída” por um terceiro componente de carne e osso: Otto (Alfredo Castro), cúmplice da personagem de Quevedo. Severina faz então uma curva fechada em direção ao suspense e os problemas do protagonista se ampliam de maneira nada natural com o ressurgimento de um personagem avulso desde sua primeira aparição, no que parece uma solução adotada de qualquer jeito para colocar mais tensão na trama e sem necessidade sublinhar traços dos personagens já estabelecidos.

    Como um leitor que entra completamente num universo fantástico, R parece fora da realidade ao repetir que os negócios vão bem – a loja está sempre vazia – e a interpretação contida de Drolas transmite sua sensação de nunca saber o que o espera e querer seguir no encalço da amada mesmo inseguro. Severina representa o zahir de Jorge Luís Borges, a pessoa mais fascinante do mundo, que domina a pensamentos e vidas ao ponto de levar à loucura – ou à libertação. Severina é literatura no cinema em conjunção executada de modo classudo, ainda que às vezes redundante, por Hirsch. O homem sem nome é autor, sujeito e leitor e não faz falta não saber como se chama. Sua musa é quem precisa desse dado para parecer real. Destaque para a trilha sonora por Arthur de Faria.

    Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.

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