Risco mal calculado
por Francisco RussoÉ curioso notar como, em seus três últimos filmes como diretor, Clint Eastwood enveredeou de vez para a temática do herói. Se em Sniper Americano tal ideologia surgia por vias tortas, pela forma preconceituosa com a qual caracterizava o inimigo iraquiano, em Sully a narrativa situava o personagem-título contra a agência federal que colocava em dúvida seu comportamento ao salvar a vida de todos os passageiros, optando por pousar no rio Hudson ao invés de retornar ao aeroporto de onde partira. Em 15h17 - Trem para Paris, a luta de um homem contra o sistema está de volta, mas sob outro aspecto.
Desta vez, Clint não está propriamente interessado em apontar o dedo para agências ou governos, mas sim para a crença geral com base na ciência. Ao adaptar mais uma história verídica, o diretor se apropria dos fatos para se posicionar contra a pré-determinação com base em estatísticas e conceitos, de forma a minimizar - ou até menosprezar - pessoas. É o velho Clint acreditando no potencial humano acima de tudo, capaz de superar adversidades e limitações em momentos cruciais da vida - como ele mesmo tanto fez, nos personagens que interpretou.
Se é até mesmo fácil entender o porquê de seu interesse por esta história, é difícil compreender certas decisões acerca da forma como é contada. A começar pela estranhíssima decisão em escalar os três americanos que impediram o ataque terrorista no trem do título para que interpretassem a si mesmos, o que de imediato traz tanto problemas de "atuação" como, também, diversas limitações de narrativa. Por não serem atores, e nem terem o menor cacoete para tanto, o trio formado por Spencer Stone, Alek Skarlatos e Anthony Sadler estrela um punhado de situações extremamente simplórias, justamente pela incapacidade em desenvolver melhor a trama. Não por acaso, o roteiro entrega um punhado de diálogos terríveis, de uma superficialidade assustadora, como acontece especialmente na visita a Veneza.
Entretanto, este não é o único problema. O preâmbulo do filme, com o trio retratado quando criança, é pura caricatura: do professor mal-humorado ao diretor punitivo, há um punhado de "verdades" ditas a esmo, sem a menor profundidade, o que prejudica demais na crença de tal ambiente. De forma canhestra, Clint constrói uma espécie de síntese do americano médio, com sua devoção religiosa e a crença absoluta na cultura da guerra, materializada seja nos uniformes militares e continências que surgem aqui e ali ou, ainda, na absoluta normalidade com a qual crianças lidam com armas guardadas em casa. Tudo isto, é importante ressaltar, sem jamais questionar tal realidade.
Tal questionamento vem apenas em dois momentos, na contestação ao uso de remédios para tratar crianças com TDA (transtorno de déficil de atenção) e, mais perto do fim, como uma irônica provocação à fama norte-americana de sempre se posicionar como o herói da história - algo que, de certa forma, o próprio filme também faz, especialmente ao omitir a participação do francês no quase atentado ocorrido no trem do título. Trata-se do único momento, ao longo de todo o filme, em que se pode perceber um certo toque de autor.
Por mais que seja admirável ver um diretor de 87 anos ainda se arriscando, tanto esteticamente quanto na narrativa, é espantoso notar como as decisões tomadas não funcionam bem em uma história até mesmo simples, que acompanha a amizade formada ainda criança que resultou em uma viagem pela Europa, já adultos, que por acaso os levou a um trem sob ataque terrorista. Mesmo o enfrentamento anunciado, que deveria ser o clímax prometido, surge burocrático, assim como a inevitável homenagem derradeira.