Roda viva
por Lucas SalgadoWoody Allen é uma das figuras mais ativas de Hollywood nos últimos 60 anos. Realiza há décadas pelo menos um filme por ano e, recentemente, se arriscou até no mundo das séries de TV, com Crisis in Six Scenes. "Escrito e dirigido por Woody Allen" se tornou quase que uma marca e, muitas vezes, é possível identificar facilmente suas obras, mesmo aquelas em que não atua. Ainda que por vezes repetitivos, seus roteiros sempre foram os pontos mais fortes e característicos de suas obras. Seu texto, geralmente, reforça o lado neurótico de seus personagens, mas também destacam cenários dramáticos e repletos de referências literárias.
Em Roda Gigante, no entanto, por mais que o roteiro seja bom, temos dois elementos que tornam a obra maior: a atuação de Kate Winslet e a fotografia de Vittorio Storaro.
Nada menos que cinco atrizes (Diane Keaton, Dianne Wiest, Mira Sorvino, Penélope Cruz e Cate Blanchett) já conquistaram o Oscar pelo trabalho em filmes de Allen, e Kate - que já levou uma estatueta por O Leitor - tem boas chances de se juntar ao time. Ela vive Ginny, uma atriz fracassada que trabalha como garçonete na região de Coney Island, praia localizada no bairro do Brooklyn, em Nova York.
Ginny vive com o segundo marido, um operador de carrossel (James Belushi) e o filho do primeiro casamento, e tem a rotina modificada com a chegada da enteada Carolina (Juno Temple), uma jovem que não falava com o pai há cinco anos, mas que precisa de abrigo enquanto tenta se esconder do marido, que tem ligações com a máfia.
A trama se passa durante o verão e é narrada por Mickey (Justin Timberlake), o salva-vidas da praia local, que tem um caso com Ginny e que também se interessa por Carolina. O astro da música interpreta o típico personagem de Woody, um sujeito fracassado que sonha em ser um poeta e escritor reconhecido. Por vezes pedante, ele narra a história como uma tragédia grega. Logo de início, o narrador deixa claro que valoriza mais o melodrama do que os personagens, e é basicamente o que vemos Mickey fazer em cena. Ele parece mais envolvido com as histórias do que com as pessoas.
Entrando especificamente na fotografia, deve-se ressaltar que estamos diante de um dos mais belos filmes de Woody neste sentido. O cineasta fez seus principais filmes com o lendário Gordon Willis (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Manhattan) e agora parece ter encontrado um novo parceiro a sua altura. Três vezes vencedor do Oscar, Vittorio Storaro (Apocalypse Now e Último Tango em Paris) já havia feito um belo trabalho em Café Society. Mas agora ele vai além. Em Roda Gigante, a fotografia é mais do que um elemento estético, é mais do que mise-en-scène, é algo que ajuda a contar a história e a transmitir os sentimentos vividos pelos personagens. O uso de cores é absolutamente deslumbrante, com uma grande variação de tons em uma mesma cena, quase que como numa roda gigante. E o melhor é que tal uso encontra um sentido real.
Passado todo no verão, o longa abusa de cores fortes, quase estouradas, que também transmitem a ideia de que estamos diante de uma fantasia. Mas a história é triste e a realidade muitas vezes derruba os personagens. É quando as cores em cena são mais frias, quase sombrias. Em um momento, Ginny e Carolina encontram Mickey na rua. As cores fortes mostram um cenário idealizado de felicidade. É quando Ginny cita o marido, o que por si só já faz o tom da cena mudar esteticamente. Tudo acontece de forma muito natural e elegante.
Ainda sobre o uso de cores, é interessante que Allen e Storaro não se ativeram à realidade. Na maioria das vezes, as cores vistas em cena não se aplicam ao espaço, como quando Ginny e Mickey se encontram na parte de baixo de um cais e os tons variam como se estivessem em um espaço aberto.
Produzido pela Amazon, o longa é claramente uma obra maior de Woody. E isso já fica claro na primeira sequência, que conta com uma câmera vindo de cima e registrando centenas de figurantes em uma praia. Se nos últimos tempos, o diretor tem feito obras baratas, aqui já podemos ver que ele teve uma maior estrutura de produção. Isso não significa que não estamos diante de um Allen típico. As cartelas de abertura, a trilha destacando o jazz, personagens inquietos e reviravoltas estão presentes.
Roda Gigante traz uma trama geral simples, valorizada por boas atuações e boa mescla entre melodrama e humor. É difícil não se tocar com Kate Winslet falando que seu maior papel é o da vida real. James Belushi também está bem, num papel surpreendentemente dramático. Do lado da comédia, o filme insere o filho de Ginny, que tem o costume de colocar fogo em várias coisas e se revela quase um pequeno psicopata. É claro que também há um drama por trás disso, reforçando o caráter disfuncional daquela família.
Woody Allen brinca com elementos como pessimismo e otimismo, idealismo e realidade, e sonho e pesadelo. Oferece um narrador intelectual, mas que a grande virtude está na gente humilde que protagoniza a história.
Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.