A jornada do anti-herói
por Bruno CarmeloO iraniano Asghar Farhadi tem construído sua carreira como diretor e roteirista baseando-se no cruzamento entre diversos personagens, cujos princípios morais desencadeiam conflitos na vida uns dos outros. Ninguém está certo, nem errado em filmes como Procurando Elly, A Separação e O Passado. Cada um possui sua lógica, bastante defensável, e por acaso o bom senso de um se confronta com o bom senso de outro, que acabava interferindo na vida de um terceiro, e assim por diante.
Esta mecânica intricada é deixada de lado no novo drama do cineasta. O Apartamento segue uma estrutura mais clássica, com um único protagonista. Apesar de outros personagens serem bem desenvolvidos, acompanhamos a história pelo ponto de vista de Emad (Shahab Hosseini), professor e ator amador, obrigado a buscar um novo apartamento quando o edifício onde mora corre o risco de desabar. Assim que adota outro lar, a esposa Rana (Taraneh Alidoosti) é agredida em sua casa por um desconhecido. Na sociedade machista onde moram, o marido sente-se tão desonrado quanto a própria esposa, e busca vingança.
O roteiro se arrisca ao construir um personagem principal arrogante, pouco solidário à esposa ferida. Ele não fornece afeto à vítima após o acidente, limitando-se a procurar a identidade do agressor e transferir a sua raiva aos alunos e colegas de teatro. Emad é bem interpretado por Shahab Hosseini, com um furor contido nos olhos, mas o personagem é o mais próximo que Farhadi já criou de um anti-herói. A questão da identificação com o espectador pode ser comprometida: como ficar do lado de um sujeito que deixa a esposa sozinha vários dias seguidos, logo após o incidente?
Pela primeira vez em sua filmografia, as mulheres recebem menos atenção que os homens, tanto em desenvolvimento de personagem quanto em força narrativa. O poder de transformação da trama está na mão de tipos agressivos e hipócritas, que decidem resolver entre eles uma agressão cometida às mulheres. A questão da honra, tão importante em sociedades regidas pela religião, é vista principalmente pelo “direito” masculino de preservar a esposa para si. A trama guarda algumas críticas a esta estrutura – Rana desfere duas falas ferozes no que diz respeito ao descaso de Emad – mas sem abalar a hierarquia social. A dor de Rana não é o foco do marido, e nem do filme.
Como se pode esperar, os conflitos morais são complexos e bem conduzidos, especialmente no terço final, quando a entrada de um novo personagem acelera o ritmo da trama e canaliza as tensões apenas sugeridas durante uma hora e vinte de projeção. Talvez o ritmo pareça arrastado durante a descrição da rotina do protagonista, entre a monotonia da escola e as encenações da peça “A Morte de um Caixeiro Viajante”, mas quando o suspense toma conta da cena, ele garante excelentes embates entre dois homens.
É possível que O Apartamento seja uma das obras mais irregulares dentro da sólida filmografia de Farhadi, que vem, desde O Passado, experimentando a possibilidade de uma mudança brusca de ritmo na parte final da história. As metáforas escolhidas, desta vez, são poéticas, mas óbvias (o apartamento em ruínas simbolizando a crise no relacionamento, a queda do caixeiro viajante coincidindo com a queda do ator que o interpreta). O cineasta permanece um ótimo cronista, dono de um estilo naturalista e contido na direção, mas seu discurso político está menos potente neste projeto.
Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.