O evangelho feminista
por Taiani MendesMulher mais controversa da Bíblia, Maria Madalena é uma personagem tão importante quanto misteriosa, descrita de diferentes maneiras ao longo dos séculos. É a “apóstola dos apóstolos”, a prostituta apedrejada, a atormentada por sete demônios, a esposa de Jesus ou a irmã de Marta e Lázaro, dependendo da fonte, e os únicos consensos são sua proximidade do Filho de Deus, o privilegiado testemunho da ressurreição e a ligação com a aldeia de nome Magdala. Maria Madalena, filme de Garth Davis, se presta a contar a verdadeira história da enigmática figura, não a colocando uma vez mais como coadjuvante de Jesus, mas sim protagonista; não apenas observada e descrita por homens, mas dona do ponto de vista. Não espere, no entanto, uma mera reencenação da Paixão por ângulo pouco explorado. As passagens mais famosas do texto sagrado não são os trechos fundamentais desta narrativa.
A primeira lição é o descolamento da imagem de prostituta. Interpretada por Rooney Mara, Madalena é uma jovem que trabalha na pesca e nada tem da sensualidade carregada outrora por intérpretes como Debra Messing, Barbara Hershey e Monica Bellucci. Moça de família, tímida e religiosa, seu maior pecado é não querer casar, envergonhando irmãos e pai. Seu grito desesperado de liberdade é mal interpretado e a última esperança de salvação da débil e aparentemente endemoniada personagem torna-se o curador cada vez mais famoso nas redondezas. Vocês sabem quem.
A revelação é gradual para o público e Maria, ambos ansiosos pelo primeiro contato com aquele sobre o qual tanto já ouviram falar. Encerrado o breve suspense, o Jesus de Joaquin Phoenix ganha a tela como um riponga bipolar, dono de olhar entre o perdido e o infantil, oscilando entre o riso bobo e a melancolia pela dor do inevitável destino. A aproximação dos dois é um forte flerte, com direito a negação familiar e desnecessário apelo sexual via seminudez, mas Garth não toma o polêmico caminho do estabelecimento do casal, seguido por O Código da Vinci e A Última Tentação de Cristo. É retratado o amor esponsal, um sentimento profundo com entrega apaixonada e união total, uma conexão intensa e exclusiva sem os beijos e o sexo dos homens.
Num outro contexto as trocas de olhares, conversas íntimas, ciúmes e afagos configurariam tensão carnal, mas aqui Maria Madalena realmente passa como uma mulher comprometida com o divino e Jesus é o incompreendido solitário que tem um pouco do peso que carrega aliviado por esse novo braço direito, promissora aprendiz. Mais do que isso. Madalena é retratada como praticamente seu equivalente feminino. Os dois salvam vidas usando os mesmos gestos encantadores – ela transmitindo paz, ele operando milagres –, Maria leva às mulheres que não ousam se juntar aos homens as palavras do mestre e também as batiza, ambos encaram sem medo os romanos e ao ver seu Rabi sofrer, Madalena igualmente desmorona de dor.
É um argumento, portanto, bastante progressista, que afirma a valente Maria Madalena como substituta natural do Salvador em termos de pregação e liderança e a coloca ao seu lado na Santa Ceia. Assinado por Helen Edmundson e Philippa Goslett, o roteiro é bastante didático nesse sentido – e em todos os outros – , ressaltando a todo momento o machismo responsável pelo seu apagamento e a grande proximidade entre Madalena e Jesus. Road movie de caminhada com muitas elipses e avanço temporal indiscriminado, Maria Madalena adapta bem as mensagens do Filho de Deus, mas coloca na boca dos outros personagens frases ridículas e engessadas.
Em mais uma atuação extremamente contida, Rooney Mara às vezes parece ainda estar interpretando a Therese Belivet de Carol, observadora e silenciosa. O arco das duas é semelhante: ambas levam uma vida infeliz até que despertam graças ao amor e por ele se jogam na estrada sem destino ou garantias, numa jornada também de amadurecimento pessoal. Enquanto o final do romance de Todd Haynes encontra uma Therese por completo diferente da inicial, em Maria Madalena a transformação é notada exclusivamente em seu discurso, a partir da compreensão do real significado palavras de Jesus. Falta na composição de Mara certo contraste e energia, algo que não deixasse a trajetória da empoderada personagem tão achatada.
Chiwetel Ejiofor interpreta o antagonista Pedro, vilão egoísta que desde o começo rejeita Maria Madalena e condena a intromissão feminina no apostolado; Tahar Rahim brilha como um comovente Judas e estrela um dos momentos mais emocionantes da trama; e Ariane Labed, Denis Ménochet e Lubna Azabal fazem pequenas participações. Elenco talentoso e internacional desperdiçado num longa-metragem que acaba tendo quase a mesma cara das dezenas de adaptações mofadas da vida de Cristo que pululam nas telinhas na Sexta-Feira Santa.
Correto que a protagonista agora é a injustiçada Madalena, algumas atuações são acima da média e, apesar de Jesus ainda ser branco, há diversidade no elenco, porém o cineasta parece preso a um estilo de cinema ultrapassado, apegado a pomposos planos de estabelecimento, usando música incidental exagerada em drama e ininterrupção e comandando tudo da forma mais conservadora possível. A maior ousadia – ou falta de noção – talvez seja um movimento de câmera do casal principal para a lua, que toda semana é reproduzido nas festas do Big Brother Brasil.
Em seu terceiro longa, Garth Davis ainda não mostrou a que veio na direção cinematográfica. Salvo pela fofura de Sunny Pawar em Lion - Uma Jornada Para Casa, desta vez ele ganha pontos extras pelo louvável revisionismo. Os apóstolos homens entenderam tudo errado e tivesse a voz de Maria Madalena superado a de Pedro, hoje teríamos um catolicismo completamente diferente. Sororidade e misericórdia são termos-chave nessa educativa reescritura da história de um ícone religioso e feminista que se livrou das amarras sociais para se jogar no mar da fé e do amor. O reino dos céus vem da semente plantada por uma mulher e o tempo do mansplaining acabou.