O horror a serviço do desabrochar da idade (ou o contrário)
por Renato HermsdorffJustine (Garance Marillier) é uma espécie de Harry Potter da veterinária. Filha de um casal bem-sucedido da área, irmã de uma veterana do mesmo curso, ela acaba de ingressar na universidade onde estudaram/ estudam seus parentes. Boa aluna, ela tem que lidar com a fama de garota-prodígio que a precede, o que, convenhamos, é uma pressão e tanta para a pouca idade.
O ambiente da faculdade é bem diferente daquele esperado pela menina introspectiva. Há mais festas e trotes do que aulas propriamente. Aos poucos, Justine, em fase de experimentação, vai descobrindo suas preferências, o que inclui um gosto bem peculiar pelo... canibalismo? Isso mesmo! Escrito e dirigido pela francesa Julia Ducournau, Grave, seu primeiro longa, é um drama de horror que carrega nas tintas (vermelhas) para apresentar, com muita elegância, diga-se, um conto que trata do tema universal do desabrochar para a maturidade.
Além da engenhosa opção pelo universo acadêmico da veterinária – ambiente de carne e sangue –, uma das boas sacada do texto é apresentar Justine e família como vegetarianos, o que aumenta ainda mais o contraste – e a curiosidade – da situação. À medida em que o filme avança, a relação de competitividade e intimidade com a irmã vai ganhando significados mais intensos.
Fica difícil acreditar que se trata de um filme de estreia. Ducournau passeia com segurança por planos variados (há um plano-sequência bem dinâmico que retrata uma das festanças logo no início) e quadros (um belo exemplo é o filmado por baixo dos lençóis de uma Justine que não consegue dormir). O elenco central, formado basicamente por atores inexperientes, também entra de carne e osso (ops) na proposta da diretora.
De forma inteligente, Julia Ducournau se aproveita dos códigos dos filmes de horror para contar um bom drama – ou o contrário. Claro que o gore está presente, mas – se é que é possível por nesses termos – sem exagero. É como se Grave fosse uma versão familiar (solar, até) da ótima produção sueca Deixe Ela Entrar.
Claro, o ato de se alimentar de carne humana aqui pode ser encarado como uma metáfora. O comportamento não-convencional da protagonista é o caminho criativo encontrado pela realizadora para expor uma situação, em princípio, de inadequação – algo tão comum quanto inevitável na fase da
adolescência, seja pelo motivo que for. E essa é a grande sacada do filme.
Mal comparando, Justine poderia ter descoberto que só sente prazer em práticas sadomasoquistas; ter perdido o controle abusando das drogas; ser atraída para as bandas de um grupo religioso fundamentalista. Mas ela descobre que degustar um polegar é a sua verdadeira praia.
“Normal”? Óbvio que não! Afinal, o direito de escolha de Justine tem grandes chances de esbarrar no direito... à vida (?) de terceiros. Mas, se para a morte não há jeito, para a vida, há sempre uma saída. Com Grave, Ducournau toma o devido cuidado de não propagandear o comportamento da sua “heroína”, ao mesmo tempo em que evita o julgamento moral fácil. Bem maduro da parte dela.
Filme visto no 41º Toronto International Film Festival, em setembro de 2016.