Precisamos debater poesia
por Bruno CarmeloNo início, estamos diante de um documentário tradicional: o professor de filologia Raffaele Pinto encontra-se dentro da sala de aula, ministrando uma palestra sobre a presença de musas na poesia clássica e na sociedade contemporânea. Como uma mulher poderia ser uma musa nos dias de hoje? Os alunos (ou talvez seja melhor dizer “as alunas”, por serem principalmente mulheres) contestam os métodos e as ideias do professor: então a obrigação de ser uma musa recai sobre a mulher? Defende-se que mulheres se tornem objeto de admiração, passivas diante da criação artística do homem? Isso não seria mera manutenção do patriarcado?
A Academia das Musas passa, no primeiro terço do filme, a impressão de constituir uma simples discussão, didática e acalorada, sobre o feminismo e sobre os maiores questionamentos da estética da arte: o amor, o belo, a subjetividade, o papel de criador e da criatura. Este debate, por si só, já seria suficientemente interessante, mas talvez um pouco pobre do ponto de vista cinematográfico – vide as imagens em estilo amador, captadas com uma câmera digital de baixa qualidade. Felizmente, o diretor José Luis Guerín tem outros planos para a condução do projeto.
Aos poucos, a câmera sai da sala de aula e começa a frequentar outros lugares: o pátio, onde duas alunas conversam entre si, e dentro do carro do professor, onde Raffaele discute filologia com suas alunas. Mas o que elas estariam fazendo lá dentro? Guerín permanece ao mesmo tempo próximo e distante, filmando a dupla através do vidro do carro, imprimindo a sombra das paisagens no rosto dos personagens. Depois, algumas conversas passam a ter duas câmeras, em plano e contraplano. Mas que documentário de baixo orçamento faz uso de duas câmeras?
O documentário, discretamente, transforma-se em ficção. Raffaele discute com a esposa suas ferramentas pedagógicas (mais uma vez, a câmera cola-se ao vidro da janela), viaja com uma de suas alunas, tem um caso com outra aluna. As conversas são sempre filosóficas, acadêmicas, de grande complexidade: alguns amantes reais podem falar sobre banalidades, mas a dupla deste filme, mesmo na cama, debate a verdade em Dante, a objetividade das musas para os gregos. Existe uma artificialidade no discurso, que se contrapõe ao realismo das imagens, gerando um efeito elétrico na obra. Então estamos diante de atores? O texto escolar é na verdade uma fala, ensaiada por um elenco afinado? Essas aulas de filologia realmente existem? Que professor adúltero admitiria ter um documentarista dentro do seu quarto de hotel, onde trai a esposa com a aluna mais jovem?
José Luis Guerín mantém uma linha tênue entre esses dois registros, situando-se em algum ponto entre a ficção completa (dos planos e contraplanos) e a naturalidade completa da câmera tremendo nas salas de aula. As verdadeiras musas, é claro, são aquelas cinco mulheres por quem Raffaele de certo modo se apaixona, tentando instruir e cativar ao mesmo tempo. “Ensinar é seduzir”, ele explica à esposa, como justificativa para sua infidelidade. Assim como os debates produzidos em tela, A Academia das Musas deve promover controvérsias também entre os espectadores no que diz respeito à posição dos homens, ao papel ativo ou passivo das alunas nesse contexto, e à exposição de corpos e ideias. “Minha função é semear dúvidas”, afirma o filólogo em outra passagem da história, e de certo modo, é isso que Guerín constrói em sua densa e misteriosa obra. Raffaele funciona, afinal, como alter-ego do próprio cineasta.
Filme visto no Festival do Rio, em outubro de 2015.