Hino à malandragem
por Bruno CarmeloO episódio do roubo da taça Jules Rimet, em 1983, contém alguns elementos que provavelmente só poderiam ter existido nesse país com noções muito particulares de malandragem e corrupção. O crime cometido por ladrões inexperientes, a segurança ineficaz do prédio onde se encontrava a taça, a gestão frouxa da CBF, a investigação mal conduzida pela polícia, a associação entre crime, política e futebol... De certo modo, este caso representa a “cordialidade” do nosso povo, e o diretor Caíto Ortiz fez uma boa escolha ao retratá-lo como uma comédia de erros.
Primeiro, o diretor acerta ao não idealizar os personagens. Todos são igualmente patéticos, de modo que seus atos só funcionam por incompetência dos outros ao redor. O famoso “esquema da pirâmide”, proposto aos amigos pelo trambiqueiro Peralta (Paulo Tiefenthaler), simboliza o projeto como um todo: um personagem passa a perna num segundo, que prejudica a vida do terceiro e, quando se percebe, todos estão afundados na mesma crise. A ausência de heróis e bandidos na história de um crime demonstra a audácia e o potencial cômico dessa premissa.
O elenco e os aspectos técnicos estão em plena sintonia com estas escolhas: Tiefenthaler faz uma excelente construção cômica do protagonista, Danilo Grangheia e Milhem Cortaz constróem um jogo de cena muito eficaz com o personagem central, e Taís Araújo, na personagem mais fictícia desta fábula às avessas, subverte muito bem a figura da “mulher gostosa” dos filmes machistas. Todos estão devidamente enfeados e desleixados, graças ao bom trabalho de direção de arte e à fotografia, que prestam atenção particular às cores dos figurinos e do cenário.
Talvez o elemento que mais chame a atenção em O Roubo da Taça seja o trabalho de câmera belíssimo, incomum em comédias populares. Caíto Ortiz e o diretor de fotografia Ralph Strelow decidem seguir seus personagens em steadycam, percorrendo corredores e cômodos de modo a captar todo o caos visual e sonoro daquela época. O cineasta demonstra raro talento de criar humor apenas pela imagem - vide a descoberta da taça por Dolores e o momento em que investigador e criminosos quase se encontram no Rio de Janeiro. Os enquadramentos imprimem a agilidade essencial à comédia, sem que o roteiro precise recorrer a piadas fáceis, nem a trilha sonora seja obrigada a avisar o público quando rir.
É uma pena que, por volta de dois terços da trama, o ritmo desacelere por não dar atenção suficiente à investigação policial. Mas compreende-se a escolha do diretor: a interação entre Peralta, a esposa Dolores e o argentino Armando (Fábio Marcoff), responsável pelo derretimento da taça, é engraçada demais para ceder espaço a outros aspectos da trama. Mesmo a presença de outros ícones da malandragem (Mr. Catra, Leandro Firmino da Hora, o Zé Pequeno de Cidade de Deus) contribuem ao clima de desconstrução do heroísmo. O Roubo da Taça é uma comédia eficaz, inteligente e incrivelmente bem filmada. É um desses projetos de cinema popular para o qual se torce que obtenha sucesso de público e inspire outros filmes de mesmo nível.
Filme visto no 44º Festival de Cinema de Gramado, em agosto de 2016.