Sangue em família
por Bruno CarmeloAlfred Hitchcock explicava que o suspense consiste numa distribuição desigual de informações: o espectador pode conhecer algo que os personagens desconhecem (ele pode saber quem é o assassino, por exemplo), ou os personagens podem conhecer algo que outros personagens desconhecem – mas que o público já sabe. O suspense se conclui quando todas as informações são reveladas, rumo ao final.
Durante boa parte de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, o suspense funciona por uma via diferente: Clarisse (Sabrina Greve) conhece muito bem os segredos do pai (Everaldo Pontes), e o senhor idoso conhece muito bem os segredos da filha. Clarisse também tem certeza das razões para ignorar o marido (David Wendefilm) que compreende o desprezo da esposa. Mas o público não é informado de nenhum desses motivos. O suspense, então, ocorre pela expulsão do espectador do campo de jogo.
Por princípio, toda construção narrativa constitui uma forma de manipulação, mas estruturas como a de Clarisse são feitas para testar os limites do espectador, guardando os segredos até a eventual descoberta. Ou seja, assiste-se à distância a um cenário profundamente sombrio, sem saber o que torna estas figuras tão perturbadas. Por um lado, isto garante a adesão do espectador, que cria expectativas para a descoberta, por outro lado, a escolha impede a compreensão dos personagens e a consequente empatia com os mesmos.
Por isso mesmo, Clarisse passa a complexa sensação de ser ao mesmo tempo lacônico demais em sua narrativa e óbvio demais na forma. Isso porque Petrus Cariry é um diretor de mão pesada, que não se contenta com um cenário tenso ou atores de expressões torturadas. Ele precisa sobrepor elementos: numa única cena, por exemplo, a câmera em contra-plongée filma Clarisse de modo assustador, andando por um corredor escuro, com a trilha crescente e gritos de um porco tomando a conta da trilha sonora, em volume crescente. O momento pode impressionar, mas quando não se compreende sua função narrativa (Clarisse vai matar alguém? Como se sente em relação aos ruídos?), ele se traduz em tela como exercício de estilo kitsch.
O filme transita, portanto, na contradição entre fisgar o espectador pelos truques estéticos (trilhas sombrias somadas com céus obscuros somado com atriz soturna somado com sangue saindo de todos os orifícios corporais) e afastá-lo pela ausência de informações. Quando as revelações ocorrem, talvez elas não sejam fortes o suficiente para justificar a construção operística, próxima do terror-arte. Cariry está muito mais interessado na orquestração do clima do que no desenvolvimento dos personagens, que acabam se assemelhando a fantasmas proferindo diálogos artificiais com gestos artificiais (a coreografia com a pistola), através de recursos narrativos absurdos (a presença do gravador, que entrega todas as informações necessárias ao público).
A cena final coroa o projeto discursivo de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois. O momento é explosivo, grandioso. É inegável que a imagem impressiona muito, mas ao mesmo tempo, sua função narrativa é irrelevante. O momento em que a protagonista encara a câmera - algo tão apreciado pela equipe que se tornou o cartaz do filme - confirma a mecânica de um projeto em forma de provocação. Clarisse guarda um parentesco com filmes de terror comuns, do tipo que prefere estimular as sensações ao intelecto, utilizando seus personagens como fantoches num casarão sombrio.
Filme visto na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2016.