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    Demon
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Demon

    Entre a fé e a razão

    por Bruno Carmelo

    Já faz algum tempo que o cinema de terror comercial parece esgotado pela imposição dos sustos, efeitos sonoros óbvios, conclusões explicativas e outros clichês. Felizmente, o circuito alternativo tem trazido provas de que é possível tratar o terror com grande rigor estético e narrativo, primeiro, privilegiando as sugestões às explicações, e segundo, entendendo que os enquadramentos e o espaço fora do quadro são essenciais para mexer com os nervos do espectador. Corrente do Mal, Boa Noite, Mamãe e A Bruxa são alguns destes bons exemplos. Agora, Demon se junta ao grupo.

    O filme polonês combina as famosas histórias de possessão com as igualmente famosas comédias de casamento, apenas para desconstruir os lugares comuns de ambas. Na trama, Piotr (Itay Tiran) está prestes a se casar com uma mulher polonesa que conhece há pouco tempo. No dia do casamento, descobre em sua futura casa um esqueleto humano enterrado no terreno, e passa a ter sensações estranhas. A noiva Zaneta (Agnieszka Zulewska), inicialmente eufórica com o matrimônio, percebe que não conhece o homem com quem está prestes a se casar.

    O jovem diretor Marcin Wrona, infelizmente falecido logo após a conclusão deste filme, demonstra um domínio invejável de mise en scène. As imagens são elegantes, contemplativas, repletas de mistério que não se desvenda facilmente. Dentro da casa vazia, especialmente, o cineasta cria belos enquadramentos, nos quais ações diferentes ocorrem em diferentes profundidades: enquanto os noivos fazem sexo na cama, por exemplo, percebe-se pela janela, ao fundo, a presença ameaçadora de certos convidados. A iluminação é muito bem trabalhada, conseguindo sugerir de modo sutil que algo errado está prestes a acontecer.

    No que diz respeito à narrativa, Wrona articula seu casamento demoníaco entre a fé e a razão. Manifestações estranhas sugerem que o noivo está possuído, mas o patriarca da família (Andrzej Grabowski), preocupado com a opinião alheia, encontra uma explicação racional para cada gesto suspeito: Piotr está apenas nervoso por causa do casamento, ou então bebeu demais. Talvez seja uma intoxicação alimentar, ou uma crise de epilepsia comum. Não há com que se preocupar. Enquanto isso, o médico sugere patologias capazes de explicar os espasmos do noivo, e o padre recusa-se a falar em exorcismo. Ninguém quer acreditar na implausível possibilidade de uma intromissão do além.

    A tensão, muito bem articulada pela montagem, alterna entre contração e relaxamento, como nos batimentos cardíacos: após uma cena de terror, vem outra de calmaria e compostura, depois vemos outro momento de terror mais intenso, e uma nova tentativa de voltar à normalidade. O fato de reconhecer a inverossimilhança do comportamento do noivo faz de Demon um filme inteligente, que não mente para o espectador nem tenta estar um passo à sua frente. Desta alternância entre fé (na possessão) e razão (na explicação médica) encontra-se um bem-vindo humor absurdo, crescente e compatível com o horror. Afinal, é nos momentos de desespero que se percebe como o ser humano pode ser desprovido de piedade. O título “Demônio”, neste sentido, expande-se a todas as pessoas cercando Piotr.

    O projeto não se sairia tão bem sem o grande elenco, muito bem orquestrado por Wrona. Itay Tiran faz uma construção gradativa e plausível da possessão, enquanto Agnieszka Zulewska alterna entre a felicidade extrema e a máxima decepção, às vezes na mesma cena. Atores coadjuvantes como Tomasz Zietek e Tomasz Schuchardt contribuem à atmosfera de suspense. Talvez Demon perca um pouco de sua força no terço final da história, quando entram em cena alguns recursos narrativos mais convencionais (a lembrança do Professor). Mesmo assim, a obra impressiona pela ousadia na fusão de gêneros, pela bela crônica de costumes da Polônia atual e pela beleza de suas imagens.

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