Jornada existencial de uma vaca
por Bruno CarmeloO projeto de Animal Político é uma bem-vinda anomalia. Por um lado, ele constitui uma pequena produção, sem atores famosos nem movimentos de câmeras mirabolantes. Por outro lado, a produção pode parecer grandiosa quando se percebe que o personagem principal é uma vaca. As primeiras imagens, portanto, chamam a atenção pela dificuldade presumida de realização: não deve ter sido nada fácil registrar o gigantesco bovino em um restaurante de luxo, dentro de um shopping center, caminhando na esteira ergométrica de uma academia ou se divertindo numa casa noturna.
Aos poucos, felizmente, é possível se acostumar com a ideia de uma vaca como protagonista, e passar a enxergar o filme como algo mais que uma brincadeira. Isso porque o animal possui uma voz interior doce e torturada. O ator Rodrigo Bolzan narra os movimentos e pensamentos da protagonista (é curioso que tenha se escolhido um homem para a voz de uma fêmea), explicando como se sente vazio apesar de levar uma vida cômoda, cheia de bens materiais e amor familiar.
Para todos os efeitos, a vaca é tratada como um ser humano qualquer: esta é uma metáfora ao mesmo tempo agressiva e lúdica à ideia da alienação. Enquanto as pessoas ao redor são consumistas e superficiais, a vaca da fábula, tal qual um patinho feio, sente-se diferente e parte em busca de “iluminação”. Curiosamente, a cultura também não a satisfaz: ela precisa vagar no deserto, entregando-se à possível morte. Existe uma alusão religiosa na figura da vaca como profeta solitário que dedica sua vida a um projeto transcendental.
O ritmo letárgico do animal poderia tornar a obra arrastada, mas o diretor Tião oferece ideias surpreendentes para quebrar o ritmo e aprofundar a reflexão. Inicialmente, ele cria uma espécie de intervalo narrativo, com título próprio: “A pequena caucasiana”. O curta-dentro-do-longa traz a história de uma rica e bela garota (Elisa Heidrich), perdida em uma ilha deserta. Nesse contexto, de nada valem as suas posses e sua família aristocrática – ela é obrigada a devorar suas joias quando tem fome.
A personagem constitui outra forma de isolamento, em oposição à vaca: a jovem caucasiana representa a personagem alienada, afastada contra a sua vontade de seu mundo de privilégios, enquanto a vaca toma a atitude política de se afastar por si própria. São duas formas distintas de romper com a inércia da classe média, mostrando como os personagens só interessam ao diretor quando retirados de seus meios naturais. Neste caminho, Tião imagina o encontro entre dois seres humanos sem cabeça, num belo momento magrittiano que contribui à metáfora da perdição.
Rumo ao final, a vaca sofre uma transformação: quando estabelece contato com figuras esclarecedoras no deserto, ela se torna “mais humana”. Esse procedimento, no que diz respeito à imagem, é visto com um humor gentil através de transformações analógicas, recusando os efeitos visuais. É inegável que a surpresa do início se atenua no último terço da trama – depois de um tempo, as deambulações da vaca marginal são percebidas como algo comum neste universo.
Do mesmo modo, algumas confluências de personagens na última parte soam forçadas, encaminhando a história a novos rumos que a narrativa não teria tempo de desenvolver. Mas a projeção se encerra antes que o trem saia dos trilhos. Animal Político constitui um projeto de construção imagética simples e ambições filosóficas complexas. Este é um cinema de estranhamento, leve e doce, que deseja criticar a configuração da sociedade sem necessariamente romper com a mesma.
Filme visto na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2016.