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    Três Lembranças da Minha Juventude
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Três Lembranças da Minha Juventude

    A memória é um animal livre

    por Bruno Carmelo

    Eu me lembro...”. Paul (Mathieu Amalric) está na cama com sua namorada. Alguns minutos depois, ele invoca alguns episódios que marcaram a sua vida. Está lançado o simples mecanismo narrativo de Três Lembranças da Minha Juventude, que evoca, episódio após episódio, com direito a numeração de capítulos e cartelas, algumas passagens importantes na trajetória do personagem.

    A maior qualidade do filme é a representação anárquica da memória proposta por Arnaud Desplechin. Ao invés de uma sucessão de fatos incontestáveis, o cineasta francês parte do princípio que a lembrança nada mais é do que uma versão extremamente pessoal da realidade, algo que evolui de acordo com o tempo e com a nossa interpretação dos fatos. Como Paul viveu uma infância terrível com a mãe pouco amorosa, o segmento nº1 (“Infância”) tem todos os traços de um curta-metragem de terror: direção de arte gótica, mãe assustadora na escada ameaçando os pequenos com uma faca. Efeitos de luz e montagem sugerem que estamos, de fato, em um grande pesadelo.

    Isso não impede que os dois próximos segmentos possuam um teor completamente diferente. A parte nº2 (“Rússia”) adota os traços de uma investigação policial, com o jovem Paul (Quentin Dolmaire) emprestando seu passaporte para judeus fugirem ao regime comunista. A parte nº3 (“Esther”) lembra um retrato agridoce de passagem à fase adulta através do amor do personagem pela enigmática Esther (Lou Roy Lecollinet), volúvel em seus amores e sempre disponível ao prazer sexual. Talvez os perigos na Rússia não tenham sido tão graves, talvez a garota não tenha abandonado Paul tantas vezes, por razões tão fúteis. Mas pouco importa: esta é a maneira como o personagem lembra sua própria história, e Desplechin permite que ele crie a sua própria narrativa. Paul, de certo modo, também é criador de histórias, e inevitável alter-ego do diretor.

    A pluralidade de tons e durações (a primeira parte é curtíssima, a última dura mais de uma hora) é responsável tanto pela riqueza quanto pelas fraquezas de Três Lembranças de Minha Juventude. A trama segue um ritmo alegremente heterogêneo, desigual, como se o espectador assistisse a três projetos distintos, ligados apenas pela presença do protagonista. A atuação de Paul contribui ao incômodo: o jovem estudante, interpretado pelo inexperiente Quentin Dolmaire, de voz vacilante e trejeitos tímidos, tem pouco a ver com o estilo seguro e maduro de Amalric na fase adulta. Seria apenas um amadurecimento?

    Despleschin deixa diversas dúvidas ao longo do filme. Esteticamente, estamos muito próximos de outros retratos realistas da juventude francesa, como em Depois de Maio, Adeus, Primeiro Amor, Amantes Constantes e afins. O cineasta divide com os conterrâneos Olivier Assayas, Mia Hansen-Love, Philippe Garrel e tantos outros o prazer pela luz natural e a câmera na mão, seguindo seus atores (majoritariamente amadores) através de festas e caminhadas pela rua, enquanto discursam sobre o futuro, a vida, o tudo e o nada. O filme recria muito bem o fervor da juventude, embora traga pouca novidade em relação à estética social que o cinema francês tem reproduzido à exaustão.

    Três Lembranças da Minha Juventude constitui uma obra agradável do início ao fim, apesar de um final um pouco arrastado. Desplechin ameaça entrar na fantasia mais selvagem da psicologia humana, mas freia este impulso antes de alçar voos longínquos. O filme permanece no intermediário entre o real e o imaginário, entre o fato e a representação, entre o prazer da aleatoriedade (com os atores improvisando) e os rigores do novo “cinema de papai”, do novo selo de qualidade da cinematografia francesa.

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