Quero ar-condicionado
por Bruno CarmeloEm 1997, o diretor Tsai Ming-Liang fez o filme O Rio, sobre um jovem sofrendo de dor no pescoço. Talvez seus problemas familiares estivessem relacionados à patologia, mas o fato é que, durante duas horas, o protagonista sofre terrivelmente, e o ator Lee Kang-Sheng atua como se tivesse um forte torcicolo. A trama pode parecer absurda, mas funciona: O Rio é um belíssimo, associando o problema muito específico do personagem aos conflitos psicológicos que atravessa.
Diante de um precedente como estes, é possível acolher de braços abertos a história de Tropykaos, sobre um jovem adulto sofrendo com o calor em Salvador. Curiosamente, o cinema brasileiro apresentou em 2015 outro longa-metragem sobre o calor que, literalmente, fazia o personagem derreter. Mas A Família Dionti trabalhava numa chave lúdica, infantil, enquanto Tropykaos dialoga com o caos das grandes cidades, condensado no símbolo do calor excessivo.
É difícil estabelecer uma leitura política ou sociológica a partir dessa trama: a obra do diretor Daniel Lisboa retrata os moradores da capital baiana como simples exemplos de corpos transpirando, sem lhes oferecer personalidade ou história próprias. A câmera cola-se ao rosto e ao corpo de Guima (Gabriel Pardal), aos seus suspiros, olhos arregalados e outros sintomas externos de sofrimento. Os médicos não identificam a fonte da suposta doença. Enquanto isso, este poeta em crise desenvolve uma dependência orgânica do ar-condicionado do quarto, correndo desesperado em busca de outro aparelho quando o seu para de funcionar.
Não faria sentido exigir realismo deste universo artificial, que assume sua verve surrealista rumo à conclusão. Por que Guima não passa seus dias mergulhado no mar, embaixo do chuveiro? Por que não raspa os cabelos, não tira as calças compridas, o casaco? Tropykaos representa o calor por sua materialidade mais óbvia: o protagonista transpira, foge do sol, busca lugares refrigerados. São raros os momentos de invenção, de metáfora, que poderiam contribuir muito a este universo, a exemplo da bela cena de delírio, quando as estátuas da cidade começam a transpirar.
Gabriel Pardal entrega-se ao personagem como um mártir enlouquecido e raivoso, num tom exagerado que combina com o propósito do projeto. O mesmo pode ser dito de personas caricatas como Edgard Navarro e Bertrand Duarte. Talvez a narrativa conquiste seus melhores momentos nos instantes de fantasia assumida, próxima do humor trash (vide a Igreja para pessoas sofrendo com as “ondas ultraviolentas”). Mas os embates dramáticos e catárticos, a exemplo da crise de abstinência do colega viciado em drogas ou o reencontro com a mãe, são fracos em termos de atuação e composição da imagem.
Tropykaos parte de uma premissa curiosa e criativa. No entanto, a produção nunca explora a fundo o potencial imagético e narrativo de sua fantasia, limitando-se ao registro mais evidente do sofrimento e do calor. A brincadeira é divertida, mas como as piadas, esgota-se rápido, deixando pouca margem a indagações ou admiração após o fim da sessão.
Filme visto na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2016.