Feios, sujos e malvados
por Bruno CarmeloA história da formação da Europa moderna já foi contada em livros de história e serviria de material perfeito para alguma obra grandiosa sobre as glórias do velho continente, culturalmente e economicamente rico. Mas o diretor romeno Radu Jude, que vem justamente de um dos países mais pobres do grupo, prefere enxergar a mistura de culturas de uma maneira nada elogiosa.
Aferim! (ou “Bravo!”, em português) se constrói como uma espécie de faroeste sem heróis. Os protagonistas são o guarda Constandin e seu filho, que trabalham como capangas em busca de escravos em fuga. Quando recebem a tarefa de capturar um cigano escondido, os dois atravessam diversas nações, culturas, conhecem vários povos... A estrutura simples funciona com o sucessivo encontro de novos grupos de pessoas nas florestas, enquanto o diretor filma a trama de maneira simples, direta, sem preciosismos.
Estamos em pleno século XIX, quando a Europa é retratada como um imenso feudo, sem limitações claras entre os países. O contexto é a escravidão permitida em todos os lugares, em nações miseráveis marcadas por pequenas rixas internas. A fotografia em preto e branco ajuda a uniformizar as pessoas e os lugares, enquanto o humor corrosivo não poupa ninguém: o roteiro inclui piadas e preconceitos sobre todas as raças, credos, gêneros e sexualidades.
A história se desenvolve como uma fábula circense, fanfarrona: os homens bebem, brigam, transam com prostitutas, roubam... O retrato poderia ser questionável se poupasse os patrões e atacasse os empregados, mas a ignorância é vista como sintoma geral, presente em todas as classes sociais, e talvez o único elemento unificador deste povo que se detesta sem se conhecer. Uma cena levou o público às gargalhadas: um padre ortodoxo cruza o caminho de Constandin e seu filho, e começa a dizer porque os judeus seriam pessoas nocivas. Depois, ele enuncia porque cada nação, raça e credo é nociva, em uma tirada longuíssima e inesperada sobre qual povo bebe mais, fuma mais, mente mais...
Talvez um faroeste romeno em preto e branco não pareça um produto de grande potencial de mercado. Mas por trás da aparência culta, esconde-se uma comédia alegremente vulgar, que consegue desconstruir a história da Europa contada pelos vencedores, preferindo uma versão histórica feita pelos homens perdidos, patéticos e atrapalhados. Aferim! bebe de uma fonte popular e acessível, além de ser universal em sua ampla caricatura de todas as nações envolvidas.
Filme visto no 65º festival de Berlim, em fevereiro de 2015.