A lenda do contador de histórias
por Bruno CarmeloEntre as grandes empresas de animação infantil, a Laika é provavelmente a menos condescendente com seu público-alvo. Enquanto a Pixar se rende às sequências e às obrigatórias cenas frenéticas e sentimentais, a Laika constitui um foco de resistência, fazendo histórias em stop motion – estilo que exige produção extensa e fornece baixo retorno financeiro –, negando as continuações e apostando em temas complexos, com imagens sombrias. A empresa confia na capacidade das crianças em absorverem um conteúdo diferente do pop colorido.
Kubo e as Cordas Mágicas transporta o estúdio à mitologia oriental, marcada pela relação íntima com a natureza e com a morte. Esta trama representa ao mesmo tempo uma fábula familiar e um épico de aventura, através dos desafios do garoto Kubo, que perdeu um olho quando bebê, perdeu o pai na mesma época e deve sustentar a casa, já que a mãe sofre de depressão. Como em Coraline, ParaNorman e Boxtrolls, Kubo também aposta na figura de uma criança predestinada que, mesmo sem o traquejo social de outros garotos de sua idade – e talvez justamente por isso – apresenta uma interpretação excepcional do mundo ao redor.
Para manter o lar, o jovem trabalha nas ruas, como contador de histórias. Ele possui cordas mágicas que, quando tocadas, transformam folhas de papel em origami dançante, capaz de se dobrar diante dos olhos do público. Estes momentos são um espetáculo visual, além de constituírem uma bela homenagem da empresa de stop motion a outra narrativa em via de extinção: a dobradura, a poesia minimalista do papel. O movimento independente dos origamis no ar funciona como uma bela alegoria da imaginação dos personagens assistindo às histórias de Kubo.
Mas o protagonista é traído por sua natureza infantil, quando contraria as ordens da mãe e permanece na cidade após o pôr do sol. De noite, o malvado avô e as perversas tias o procuram para roubar seu outro olho e condená-lo, literalmente, à escuridão. Não por acaso, o avô e a tia são figuras sem olhos, de trejeitos perversos. O roteiro brinca com diversas configurações da visão: Kubo possui uma cicatriz sobre o olho, a mãe catatônica não usa os olhos que funcionariam perfeitamente, um monstro marinho constitui um gigantesco globo ocular capaz de enfeitiçar quem o observa. O olhar é capaz de esclarecer, mas pode ser perigoso, insiste a trama.
Entre tantos símbolos, o filme se desenvolve com um raciocínio particular, associando humanos a animais, e animais a forças do além. É impressionante ver a quantidade de serpentes voadoras, esqueletos gigantescos e outros seres fantásticos que desafiam o protagonista. São momentos assustadores para as crianças pequenas, e ousados como metáforas da morte. Talvez, rumo à conclusão, as reviravoltas se sucedam em velocidade rápida demais, com um ou outro conflito explicativo em comparação com o ritmo fluido da primeira metade.
Mesmo assim, Kubo e as Cordas Mágicas representa uma obra impressionante não apenas pela dificuldade técnica, mas pela capacidade de atribuir aos personagens, em traços simples, uma profundidade psicológica incomum no cinema - infantil ou adulto. Quanto mais se afasta do realismo fotográfico, mais livre a Laika se torna para criar.