Crônica de uma singularidade
por Bruno CarmeloUma mulher passeia pelas ruas de Montevidéu com um carrinho de feira contendo seus pertences. Ela pergunta a diversas pousadas se há vagas disponíveis, mas as resposta é sempre negativa. Por que ela nunca encontra onde ficar? Essas imagens belas, mas distantes da personagem, não permitem ver a princípio que a protagonista deste filme é Stephanie, uma transexual de 42 anos, que leva uma vida solitária na cidade.
O Homem Novo, de Aldo Garay, revela sua história de modo clássico, mesclando cenas cotidianas com imagens de arquivo, vistas pela própria personagem na tela da televisão. O grande mérito do documentário é sua abordagem humanista: Garay foge do cinema denúncia, do fetiche da transformação física, para mostrar de modo simples e afetuoso uma trajetória de vida completamente singular. O interesse do projeto encontra-se nas escalas do olhar: partindo de um material digno do cinema-espetáculo, o diretor faz um pequeno filme íntimo.
Isso porque Stephanie cresceu na Nicarágua, e partiu para o Uruguai para trabalhar na guerrilha. Seus pais “emprestaram” a filha aos militares, e assim ela viajou para permanecer durante décadas, sem contato com os familiares. Neste período, afastou-se da guerra local, assumiu a identidade trans, viveu nas ruas e recorreu à prostituição. Muito tempo mais tarde, sozinha e resistente (“o tempo não muda nada, só aumenta o sofrimento”, ela afirma), Stephanie tenta aceitar a calvície recente, o isolamento da sociedade, enquanto busca reatar com os irmãos.
A câmera de Garay está sempre direcionada à protagonista, perto o suficiente para captar suas ações, mas sem invadir sua privacidade. Stephanie olha algumas fotos suas nas redes sociais, fala consigo mesma sobre a sua situação. Entre esses diálogos internos, entram de maneira discreta as primeiras relações com a mãe, o pai, o irmão depois de muitos anos. A transexualidade não constitui um problema nestes casos: o principal conflito encontra-se no evidente desconforto de cada membro da família em relação ao abandono durante a juventude.
Assim, pela beleza das imagens, pelo retrato carinhoso e pela personalidade expansiva da protagonista, O Homem Novo constitui um documentário muito interessante sobre as perdas da raízes e a reconstrução da identidade. Distante do seu país, da sua família, da sua identidade e do passado militar, Stephanie poderia ser retratada como sintoma de uma personalidade vitimada pela sociedade. Mas Garay enxerga nesta “nova mulher” uma força e uma dignidade bonitas de se ver na tela.
Filme visto no Festival do Rio, em outubro de 2015.