Humor em tempos de Internet
por Bruno CarmeloQuando foi anunciada a decisão de preparar um longa-metragem sobre o Porta dos Fundos, a maior dificuldade que se apresentava ao grupo humorístico dizia respeito ao formato. O canal no YouTube é conhecido pelas esquetes curtas, de cerca de três minutos, com desenvolvimento, clímax e desfecho próprios. Como adaptar esta estrutura o formato longo? Felizmente, o primeiro desafio é superado: o filme possui uma linha narrativa coesa, e não se parece com uma sucessão de esquetes. Ainda melhor: ele não bebe no humor televisivo, como a grande maioria das comédias de sucesso popular. Para o bem ou para o mal, Contrato Vitalício traz o humor dos nossos tempos, adaptado ao raciocínio típico das redes sociais.
Assim, ao invés de rir de homens gordos, loiras burras, gays carnavalescos e outras figuras do tipo, o projeto prefere ridicularizar o mundo do espetáculo. O Porta dos Fundos sempre foi forte na crônica do entretenimento, e dedica uma produção inteira para dissecar a indústria do cinema, da televisão e do estrelato. Nada mais justo do que começar a carreira cinematográfica com um bem-vindo senso de autoparódia. Para obter o distanciamento necessário ao olhar crítico, o roteiro de Fábio Porchat e Gabriel Esteves adota uma incursão pela fantasia, fazendo o personagem de um diretor em ascensão (Gregório Duvivier) sumir durante dez anos, e retornar dizendo que foi abduzido por alienígenas do centro da Terra.
Quando reaparece, Miguel (Duvivier) explora o contrato assinado numa noite de bebedeira para forçar o ator e antigo amigo Rodrigo (Fábio Porchat) a trabalhar em seu próximo projeto, “A Batalha de Klinglonfland”, uma biografia de sua permanência no cativeiro alienígena. Partindo de uma premissa em estilo Se Beber, Não Case, o projeto insiste que o próprio contexto onde se insere o grupo Porta dos Fundos - o mundo jovem, conectado, que multiplica referências de modo veloz e superficial - possui um teor grotesco. As melhores cenas, não por acaso, acontecem quando o “homem comum” interpretado por Porchat percebe que dezenas de artistas ao seu redor confiam cegamente no filme sobre alienígenas. A sanidade, neste caso, constitui uma exceção.
Para representar a lógica vertiginosa da Internet, o roteiro despeja dezenas (centenas?) de referências a filmes, personalidades, fatos. Ninguém escapa do rolo compressor que engole com a mesma voracidade as referências cult (Laranja Mecânica), as cult-trash (Cinderela Baiana) e as escatológicas (as inevitáveis piadas de flatulência e excrementos), citando em poucos minutos um número incontável de celebridades brasileiras. Existe uma ambiciosa tentativa de lançar piadas a todos os grupos socioculturais - assim, se você não entender uma referência, entenderá outra. O resultado, claro, é a saturação dos sentidos, o humor tão insistente que pode nos vencer pelo cansaço. Mesmo sem adotar a estrutura de esquetes, Contrato Vitalício proporciona uma experiência equivalente a ver vídeos do YouTube durante uma hora e meia, o que pode ser o paraíso para alguns espectadores, ou o pesadelo para outros.
Os personagens repetem o funcionamento dos tipos cômicos, cada um dotado de uma única característica explorada à exaustão. Thati Lopes, a blogueira fitness, limita-se a ser superficial em todas as cenas em que aparece; Marcos Veras, o colunista de uma revista de fofoca, explora a vertente sensacionalista da mídia; Luis Lobianco, como o agente egoísta de Rodrigo, faz o tipo tão conectado às redes sociais que não enxerga o mundo ao redor. Nenhum deles se desenvolve, mas talvez a intenção seja justamente trabalhar com marionetes de uma sociedade falsa como os cenários em papelão de “A Batalha de Klinglonfland”. Na hora de gravar este filme-dentro-do-filme, nenhum deles sabe suas falas, nem entende seu propósito, mas estão felizes por ser registrados e vistos. A exposição torna-se um fim em si mesma. As únicas vozes não alienadas são a de Rodrigo e de Miguel. A cultura popular costuma dizer que a verdade sai da boca dos puros e dos loucos, e a dupla principal representa exatamente isso: um homem puro, e outro louco.
Os atores se saem muito bem em suas caracterizações, demonstrando total sintonia com o universo paródico. O humor não é escrachado, careteiro nem ofensivo: as piadas se focam acima de tudo na agilidade dos diálogos. Depois de tantas produções de humor conservador, chega a ser um alívio encontrar personagens de mulheres fortes como Denise (Júlia Rabello, interpretando uma versão da preparadora de elenco Fátima Toledo), homens gays comedidos como Lorenzo (Marcos Veras, excelente na escolha do tom) e figuras deliciosamente imorais como o detetive/matador de aluguel Otacílio (Antônio Tabet). O fato de todas essas figuras existirem num mesmo universo garante a cota de absurdos, mas melhor ainda, elas existem uma por causa da outra. Contrato Vitalício traz uma espécie de circo dos horrores do mundo pós-moderno.
Deve-se frisar que, apesar do fervor anarquista, o longa-metragem nunca se torna subversivo. Este é um humor dócil, afinal das contas: critica-se a si próprio com o afeto autoindulgente de quem pretende continuar reproduzindo a mesma estrutura criticada. Afinal, o grupo Porta dos Fundos vive justamente da exploração deste mecanismo. Ao final da sessão, à medida que uma centena de jornalistas, blogueiros e YouTubers saíam do cinema, todos pegavam seus telefones celulares, seus tablets, seus paus de selfie e minicâmeras, e começavam a gravar vídeos no Snapchat, publicar impressões no Facebook, tirar fotos para o Instagram, colocar opiniões no Twitter, enviar mensagens de áudio, de imagem, de vídeo pelo What’s App. O hall do cinema estava tomado por pessoas falando de si mesmas, diante de telas, sorrindo exageradamente para uma plateia virtual. De repente, o mundo de Rodrigo nem parecia tão absurdo assim.