Biografia autorizada
por Bruno CarmeloComo este documentário sugere, Gazelle é uma artista e performer muito conhecida no circuito gay e underground, especialmente em Nova York. Para quem nunca ouviu falar nela, o filme explica que se trata da amiga de grandes fotógrafos, pintores e estilistas americanos, responsável pela publicação da prestigiosa revista Gazelland, valorizando a cultural drag, gay e transexual. Gazelle também é o codinome de Paulo, um brasileiro de 45 anos que trocou o país natal pelos Estados Unidos.
O diretor Cesar Terranova faz um bom trabalho ao valorizar a arte de sua biografada, destacando diversos figurinos e exposições, enquanto estabelece uma relação direta entre a criação artística e a necessidade de expressão individual. O cineasta faz de Gazelle uma autora, no sentido estrito do termo: ela é a criadora de uma persona reconhecível, apreciada, com traços próprios, e que refletem de maneira direta a sua própria personalidade. Ela seria a síntese do pensamento autoral, representando ao mesmo tempo o criador e a criatura, numa fusão interessante entre body art e cultura queer.
Tecnicamente, a obra varia bastante. A montagem de Gazelle - The Love Issue é muito inteligente e precisa, desde a apresentação até a maneira natural com que aborda a soropositividade de Paulo. Num momento particularmente triste, durante o depoimento sobre a morte do marido de Paulo, o documentário retira as fotos do ente falecido para apresentar novas fotos de Gazelle, em desfiles comuns. Com ritmo bem dosado, o filme sabe quando explorar os sentimentos, e quando respeitar a privacidade do biografado. Ao mesmo tempo, nas importantes cenas dentro do consultório médico, a captação de som é deficiente, e a câmera na mão prejudica a composição estética.
Ao mesmo tempo, restam algumas regiões de sombra na trajetória de Gazelle. Em que circunstâncias ocorreu a mudança entre o Brasil e os Estados Unidos? Como Paulo consegue financiar um modo de vida tão luxuoso, tendo apenas o emprego de comissário de bordo? Os colegas no emprego, ou fora do mundo da moda, conhecem Gazelle? Como é exatamente a relação com a família? Cesar Terranova evita abordar questões delicadas do passado, concentrando-se apenas na arte e no presente. De certo modo, ele deixa Gazelle controlar o discurso fílmico, mostrando apenas o que ela mesma prefere mostrar.
Isso gera um aspecto incômodo de biografia autorizada, um tanto condescendente. O cineasta não busca ambiguidades, metáforas, contradições. Ele deixa Gazelle falar por si mesma, expondo as suas dúvidas, reforçando seu discurso de sobrevivente, de fonte de inspiração. Como personalidade que vive da própria imagem, e que tem plena consciência do uso feito de sua persona, Gazelle sorri nos momentos certos, e inclusive chora belamente para a câmera durante um ensaio fotográfico. Existe um aspecto de encenação nesta estrutura, que talvez corresponda bem à personalidade de Paulo, mas que não poderia impregnar o próprio filme. Apesar da incapacidade de estabelecer um distanciamento crítico em relação a Gazelle, The Love Issue (belo título, aliás) consegue tratar com respeito e naturalidade uma relevante personalidade do cenário queer.
Filme visto no Rio Festival Gay de Cinema, em julho de 2015.