Todos podem ser heróis
por Bruno CarmeloÉ fascinante como uma mesma história pode dar origem a dois filmes completamente diferentes. Por um acaso do circuito nacional, estreiam quase simultaneamente Marguerite e Florence: Quem é Essa Mulher?, duas biografias sobre Florence Foster Jenkins, uma mulher rica e apaixonada pela música. Mesmo sem o mínimo talento para o canto, é encorajada pelas pessoas ao redor a investir na carreira musical. O filme francês via na personagem a possibilidade de discutir a hipocrisia nas relações sociais e os limites do julgamento artístico. Já a produção americana enxerga acima de tudo o potencial cômico desta diva desafinada. O primeiro filme desconstrói a noção de talento, enquanto o segundo constrói uma heroína.
O diretor Stephen Frears abandona o lado obscuro de suas outras biografias femininas como Philomena e A Rainha para construir uma comédia solar, acessível a toda a família. Para isso, investe numa interpretação simplificada das relações de classe: neste mundo, as pessoas são boas ou malvadas, perversas ou ingênuas. Quando alguém debocha do canto de Florence (Meryl Streep), é preciso que a pessoa literalmente role de rir pelo chão do teatro, mas quando a apoiam, levantam-se em pleno concerto para dar uma lição de moral aos outros. Quando a cantora tem dúvidas sobre seu talento, ela verbaliza suas questões (“As pessoas estavam rindo de mim?”), e quando precisamos conhecer informações sobre seu passado, ela mesma explica sua trajetória ao pianista (Simon Helberg).
O discurso é facilitado pelo didatismo, transformando o resultado numa espécie de Sessão da Tarde de luxo, com grande produção e nomes de peso no elenco. Ao invés de debater a arte, o roteiro prefere investir em valores universais, incluindo uma doença grave e um triângulo amoroso para aumentar o potencial emotivo. Privilegia-se a esposa à artista, a vida privada à vida pública. O foco está na superação: apesar de ser uma péssima cantora, a protagonista pode conquistar a fama; apesar de ter problemas familiares, ela pode ser uma mulher bem resolvida. Frears ridiculariza a personagem nas cenas de canto, para demonstrar piedade nas cenas seguintes.
Pela simplicidade do projeto, ele talvez não funcionasse sem um grande elenco. Felizmente, os atores são muito bem escolhidos. Hugh Grant empresta seu estilo “charmoso atrapalhado” ao marido de Florence, numa combinação eficaz. Meryl Streep possui todos os recursos vocais e dramáticos necessários: mesmo que não traga novidades em relação a atuações anteriores, garante mais um trabalho sólido. A maior surpresa fica por conta de Simon Helberg: o astro da série The Big Bang Theory faz uma composição excelente, com voz doce e expirante, capaz de extrair o máximo humor de cada diálogo. Mesmo atores coadjuvantes como Nina Arianda e Christian McKay cumprem muito bem os seus papéis.
Florence: Quem é Essa Mulher? pode representar uma leitura frívola da história da cantora, mas cumpre seus objetivos cômicos e cinematográficos. É interessante que pessoas “fracassadas” (leia-se: nem os melhores de sua área, nem os perdedores que deram a volta por cima) também sirvam para o cinema comercial. Florence não marcou a história, seu marido e pianista nunca se tornaram pessoas de destaque. Esta é a história de uma anônima, resgatada pelo cinema como sintoma de uma época (no caso de Marguerite) ou como prova de que, se realmente tentarmos, todos podemos alcançar os nossos sonhos. Para o bem ou para o mal, o otimismo impregna cada cena do filme.