Esse obscuro objeto do desejo
por Bruno CarmeloMichèle (Isabelle Huppert) é uma mulher determinada, que gosta de se cercar de pessoas que a detestam. Aos 50 anos, ela dirige uma empresa de criação de videogames, um terreno predominantemente masculino e jovem. Quando é humilhada por um funcionário, ela não o demite, pelo contrário, fica mais próxima de suas atividades. Michèle mantém por perto o ex-marido que a agrediu, e um amante que a despreza. Não é de se espantar que, no dia em que sofre um estupro dentro de sua casa, ela não fuja. Pelo contrário: a protagonista reconstrói sua vida com eficácia, buscando se aproximar do agressor. “Mantenha seus amigos por perto, e seus inimigos ainda mais perto”, diria o ditado.
Elle é uma obra controversa, por escapar a qualquer expectativa narrativa ou cinematográfica associada à figura do estupro. Este não é um drama sobre o trauma do ato, como O Silêncio do Céu, tampouco funciona como um rape and revenge movie, no estilo de Doce Vingança. Michèle não é uma personagem perversa, passiva nem sofrendo de qualquer síndrome de Estocolmo. Seu comportamento soa tão estranho que talvez seja mais fácil, justamente, descrevê-la pelo que ela não é. O filme de Paul Verhoeven incomoda por situar uma ação de claro cunho moral para além da razão e da ética, além do bem e do mal. Nenhum personagem age como se esperaria nesta situação, e este mecanismo solicita constantemente o julgamento do público.
A subversão, portanto, nasce da intricada discussão humana. Com longa duração (135 minutos), o projeto tem tempo para desenvolver a personalidade de Michèle e de uma dezena de personagens que a cercam, incluindo cenas que podem parecer acessórias, mas contribuem à compreensão do universo particular onde vive a protagonista. Aos poucos, o espectador descobre que o estupro está longe de ser o maior trauma na vida da empresária: ela convive, desde criança, com os resquícios de uma tragédia muito mais forte, que inclusive determina a maneira pragmática de lidar com a nova crise.
O ponto de partida serve para dissecar as estruturas de poder nas sociedades contemporâneas. O sexo, o trabalho, o amor e a família são vistos como formas de organização perversas em si. A mulher precisa se impor diante do homem, o filho precisa se rebelar contra a autoridade da mãe, a esposa enfrenta o estatuto social do marido, o funcionário contesta o patrão. A obra questiona toda forma de dominação, culminando no exemplo da violência sexual. A sugestão mais inesperada nasce na análise do amor em tempos de individualismo: é possível amar alguém num contexto de dominação? Existe afeto na violência?
Estes questionamentos são pertinentes, porém indigestos. Elle deve despertar reações calorosas no público, tanto positivas quanto negativas. Este é um filme capaz de se encerrar numa cena libertária e feminista, logo após apresentar um subtexto possivelmente misógino na cena anterior. Não existem interpretações fáceis na produção de Paul Verhoeven. Diante de um emaranhado ambíguo, o cineasta mantém uma cartilha visual simples, colando a câmera ao corpo da protagonista, retornando em eventuais flashbacks, mas sem floreios estéticos. A direção está a serviço de um roteiro labiríntico e não tenta chamar a atenção para si mesma.
Talvez este filme possa ser compreendido pelo prisma dos fantasmas e dos fetiches - dois termos muito próximos quando se estuda a sexualidade. As atitudes de Michèle, de seu ex-marido, do filho, do agressor e da melhor amiga só fazem sentido na mecânica das pulsões e do imaginário. Os personagens são tomados por seus desejos, e Verhoeven permite que saiam impunes de gestos socialmente inaceitáveis. Elle possui a audácia, ou mesmo petulância, de não usar o estupro como origem de um trauma, mas como ferramenta psíquica para a resolução de outro trauma maior - aquele anterior, na infância de Michèle. A protagonista é, de fato, beneficiada pela nova violência que sofre. Difícil pensar numa abordagem mais sulfurosa do que esta.