Nasce uma transexual
por Bruno CarmeloOs retratos de transexuais são raros nos cinemas, e mesmo nestes casos, a maioria dos filmes se concentra no aspecto mais evidente e imagético do tema: a transformação física. Hormônios, roupas e cirurgias de redesignação genital constituem um imaginário anatômico que nem sempre questiona os conflitos psicológicos por trás desta decisão. Este raro lado íntimo da identidade de gênero constitui o objeto de estudo do belíssimo filme sueco Algo a Romper.
Na trama, Sebastian (Saga Becker) leva uma vida entediante, com um salário baixo e relacionamentos amorosos inconsistentes. Contrariando os clichês do tema, ele não se prostitui, não sofreu abusos na infância, não é promíscuo, nem um consumidor frenético de drogas. Embora esses elementos possam acontecer nas vidas reais, o filme prefere um retrato minimalista, distante do melodrama e do engajamento universalizante. A diretora transexual Ester Martin Bergsmark nunca tenta justificar de maneira simples a motivação por trás da transformação de Sebastian em Ellie.
A delicadeza do roteiro é auxiliada pelo uso deslumbrante de imagens e sons. A fotografia, uma das mais belas vistas no cinema este ano, trabalha com maestria os tons escuros, tendendo à depressão mais do que ao suspense, fazendo escolhas expressivas de lentes e de profundidades de campo. A montagem cria um ritmo contemplativo, mas nunca excessivamente lento, e a trilha sonora consegue combinar acordes doces com duras canções de amor, dizendo que “você é a única pessoa com quem eu quero fazer sexo hardcore”. Curiosamente, apenas o sexo casual ganha um tratamento artificial, com câmeras lentas que remetem a Lars Von Trier, em oposição ao naturalismo do sexo entre namorados.
Sexo e gênero são associados entre si de maneira descomplicada. A nudez ganha tratamento explícito, mas bastante singelo e natural. A construção do corpo, algo essencial à questão trans, adquire um caráter inviolável: as imagens da cineasta revelam o corpo de Sebastian/Ellie como fariam com uma estátua renascentista, com uma nudez fria, direta, mas inacessível. A câmera não se aproxima da genitália, enxergando o corpo como algo inteiro, não fragmentado. Ser homem, ser mulher ou ser trans é uma questão de identidade, não apenas genital, e Bergsmark encontra uma maneira poética de veicular esta mensagem.
Guardando as devidas proporções, Algo a Romper segue a abordagem de obras como Azul é a Cor Mais Quente, A Vida Sonhada dos Anjos ou Oslo, 31 de Agosto, três filmes que acompanham seus personagens dia e noite, esperando pelos fatos do acaso, com uma insistente câmera na mão e um interesse imenso por casa gesto ou emoção. Em todos esses casos, os personagens de classe média baixa não são julgados por suas atitudes nem por sua sexualidade. Tampouco predomina um determinismo associando o ambiente social com eventuais desvios de caráter.
Ao mesmo tempo, pela proximidade com os indivíduos, pela profunda atenção ao cotidiano, é impossível acusar os artistas de indiferença em relação às suas vidas e à sociedade em que se inserem. Algo a Romper é um tipo de cinema político sem ser militante, delicado sem ser atenuado, tomando partido ideológico e estético em defesa da integridade de sua personagem principal. E ainda consegue respeitar todas as pessoas a redor – algo raro neste tipo de narrativa – com um tratamento comovente do namorado de Ellie, Andreas (Iggy Malmborg). Sem fugir de tabus, o filme fornece um tratamento humanista e carinhoso de uma personagem transexual, algo que o cinema precisaria fazer com maior frequência.
Filme visto no Festival do Rio, em setembro de 2014.