Veículo de um tema e para uma atriz brilhar
por Rodrigo TorresA história do mundo mostra que tempos de instabilidade tendem a impulsionar o fascismo. Assim tem sido desde o colapso financeiro de 2008, vem se intensificando com a crise migratória na Europa, e seus efeitos se manifestam em todas as partes do mundo, incluindo Estados Unidos e Brasil. Diante desse cenário, o premiado diretor de origem turca Fatih Akın aborda em seu novo filme não só o crescimento da xenofobia (que é global), como a alarmante nova ascensão do nazismo em seu país, a Alemanha.
Em Pedaços é veículo desse tema, expondo com amargor o boom da extrema direita no Velho Continente e as formas que o Nacional-Socialismo encontra de se camuflar como uma manifestação de democracia. O filme também critica a limitação da Justiça em oprimir esse modo de opressão — o que ainda instiga, em um contexto mais amplo, uma discussão pertinente sobre a necessidade da intolerância contra os intolerantes, como defendia o filósofo pacifista Karl Popper — e seu lugar como defensora do Estado Democrático de Direito. Mas o longa-metragem vai além do discurso, fazendo uma articulação de linguagem interessante: opera gêneros populares, assim garantindo o engajamento do público em sua mensagem; e realiza um trabalho estético variante e eficiente, combinado à função.
Em linhas gerais, Em Pedaços é um típico dramalhão com tons de suspense, algo universalmente popular. As cenas iniciais se dedicam a reconstituir um casamento simples, gravado com uma filmadora caseira (alternância de registro que antecipa a de estéticas no filme), e revelar uma família feliz, já estruturada, anos depois, com um filhinho fofo chamado Rocco. A primeira grande manipulação dirigida por Fatih Akın é narrativa, quando um atentado destrói esse lar. Outras tantas serão da imagem a serviço de uma trama redonda, com seus picos de empatia e comoção pelo sofrimento de Katja (Diane Kruger).
Sua protagonista afunda em uma tristeza agoniante, suja, marcada pelo abuso de drogas e uma fotografia gélida. Quando se ergue e traz consigo o hesitante advogado Danilo (Denis Moschitto), o tom se mantém frígido até Em Pedaços se embrenhar em uma investigação e virar um legítimo filme de tribunal. Ali, a câmera irá explorar a profundidade de campo, em que o personagem que fala é mero coadjuvante de Katja, no centro e em primeiro plano, perdida, aflita. A câmera se ergue e se desalinha para ilustrar o agravamento, a confusão de seu estado psicológico quando pressionada pelo defensor do casal neonazista, propositalmente retratado de maneira odiosa por Johannes Krisch — expressivo, vilanesco. Quando a injustiça se instaura e sua crença no sistema se exaure, Katja se liberta, parte para sua própria vingança e o sol toma conta da projeção, no terço final.
Nada disso acontece por acaso, mas tampouco toma o espectador de assalto. O barato de Em Pedaços é perceber os processos de Fatih Akın para manipular o público em torno de uma proposta, ou apenas senti-los. Tal como Ken Loach realiza no também recente, autoconsciente e comovente Eu, Daniel Blake. E, apesar de todas as qualidades apontadas, o sucesso do drama francogermânico se deve a outro artista premiado em Cannes. No caso, outra: Diane Kruger, que veicula e transborda com maestria as emoções pensadas pelo cineasta — e, assim, carrega o filme nas costas.