Poema de amor e merda
por Bruno CarmeloUm filme infantil dirigido por Cláudio Assis? Em seus três primeiros longas-metragens, o cineasta pernambucano surpreendeu pelo retrato cru do sexo e da violência, focado em experiências de marginalidade. Trabalhando pela primeira vez com uma adaptação literária (o livro “Big Jato”, de Xico Sá), Assis relata a passagem à fase adulta de um garoto nordestino comum, Francisco (Rafael Nicácio), dividido entre três referências paternas: a do pai biológico, um tipo agressivo e machista (Matheus Nachtergaele), a do tio anarquista, estrela de um rádio local (também Matheus Nachtergaele) e a de um homem do povoado (Jards Macalé), que se autointitula Príncipe e compartilha suas histórias amorosas com o garoto.
A fusão improvável entre a doçura da infância e a aspereza de Assis provoca um resultado muito interessante. O diretor troca a fotografia rígida de Walter Carvalho pelas cores saturadas e paisagens grandiosas de Marcelo Durst, que contribui a uma obra solar, calorosa. Ao mesmo tempo, as crianças são tratadas sem ingenuidade ou idealização: fala-se de maneira frontal e impudica sobre sexo, amor e merda – afinal, a família é sustentada pela limpeza das fossas sépticas alheias, com a ajuda do caminhão Big Jato. Todas as expressões sexuais e escatológicas mais chulas saem da boca dos adultos, das crianças e dos loucos. Este é um terreno de falas livres e morais estritas.
Big Jato, de certo modo, funciona como uma fábula, com personagens improváveis e histórias fantásticas destinadas a auxiliar o jovem Francisco a descobrir o mundo adulto (vide as lendas da cidade Peixe de Pedra e a teoria mirabolante dos Beatles como um plágio da banda Os Betos). Estamos sempre a um passo do realismo fantástico, mas dentro de um registro social com bases muito realistas. Depois de Febre do Rato, Cláudio Assis volta a mostrar a poesia como a atitude mais subversiva possível no mundo atual: o jovem Francisco é rechaçado pelo pai por querer construir versos, e sua rebeldia adolescente consiste em criar um poema sobre amor e flatulência.
Um dos melhores aspectos do filme é o olhar acolhedor à juventude. A câmera está sempre junto do garoto, compartilhando seus delírios (os sonhos com a colega de escola nua), seguindo seus primeiros medos, sua primeira experiência sexual, o nascimento dos pêlos. Não existem pudores nesse retrato íntimo, construído com planos próximos, cuidadosamente pensados para incluir mais personagens, mais cenário, mais objetos. Os enquadramentos seguem uma lógica afetuosa, mostrando todos os personagens como condicionados pelas ações dos outros. Assim, a família de Francisco adquire um caráter universal.
Alguns elementos, talvez, minimizem a potência do conjunto. O jovem Rafael Nicácio, inexperiente, não consegue sustentar cenas de maior tensão dramática, incluindo o confronto com o pai. A busca de liberdade do protagonista também recorre a alguns símbolos um pouco gastos (o mar será sempre o oásis do sertão?), e as citações a outros filmes de Assis parecem mero exercício de vaidade. De qualquer modo, esta é uma obra sem medo de excessos, de parecer patética, de fazer piadas rasteiras, de discutir excrementos, secreções e cheiros com a intimidade de quem fala de flores.
A maioria dos filmes sobre jovens e para jovens acreditam na imporância de educá-los, transmitindo bons ensinamentos através da arte. Big Jato defende apenas que experimentem, questionem a ordem imposta, fujam das prisões físicas e mentais que afetam todos os adultos da história. Esta é uma ideologia louvável, e radical, em termos de conservadorismo extremo.
Filme visto no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2015.