De roer as unhas (e comer os dedos)
por Renato HermsdorffHá pelo menos dois subgêneros embutidos dentro deste Boa Noite, Mamãe. Se funcionam ou não, vai depender da percepção do espectador. Isso porque, desde o início do filme, está implícito que haverá uma “revelação” em algum momento. Matar a charada (um tanto óbvia, para dizer a verdade) logo de cara não invalida, mas prejudica a experiência; passar despercebido por ela, por outro lado, é vivenciar plenamente umas das sensações mais aterrorizantes provocada pelo cinema contemporâneo.
O filme dos austríacos Veronika Franz e Severin Fiala (que tem papado uma série de prêmios pelo mundo desde que foi lançado em 2014) acompanha o retorno de uma mãe (Susanne Wuest) para casa após uma cirurgia e, irreconhecível (tanto fisicamente quanto no temperamento), desperta a desconfiança dos filhos gêmeos Lukas (Lukas Schwarz) e Elias (Elias Schwarz). As crianças, de nove anos, duvidam que se trate de sua verdadeira progenitora.
Quem é essa mulher? O que aconteceu com ela? Por que ela não age como antigamente? Não há uma figura paterna? São perguntas que a narrativa induz a audiência a se perguntar na primeira metade do filme, ancorada em uma ótima caracterização da personagem da mãe (uma múmia “possível”) e no cenário isolado da bela casa (plantada no meio de uma floresta) – e, embora um tanto repetitivo nesse momento inicial, a produção entrega as respostas. A mise en scène dá conta de construir um bem-sucedido clima de suspense psicológico. É de roer as unhas.
A grande sacada acontece quando os meninos decidem inquerir a mãe, de fato, a respeito da própria identidade (dela). Sem pudor (e sem spoiler), os realizadores mandam às favas a premissa comumente assumida como sacra da relação mãe e filho(s) - e de crianças como seres intocáveis - e o terror é convocado para assumir Ich seh, Ich seh (no original) como gênero, do meio para o final do filme. É de comer os dedos.