Viver o livro
por Francisco RussoNunca é fácil escrever um livro. Por mais que se conheça a técnica necessária para a produção de uma história envolvente, o processo de criação é sempre árduo para aquele que, além de construir a trama em questão, ainda precisa definir o modo como ela será contada. Em Beatriz, novo trabalho do diretor Alberto Graça (O Dia da Caça), o tema principal é exatamente a produção de um novo livro e o quanto isto afeta a mente de um jovem autor. Em meio a dilemas existenciais, ele aos poucos desenvolve um perigoso e supostamente excitante jogo com sua esposa e musa inspiradora.
Morando em Lisboa, Marcelo e Beatriz formam um jovem casal que gosta de se provocar, seja através de mensagens cifradas ou fantasias sexuais realizadas em locais públicos (na parede do apartamento em que vivem há um painel com tais locais marcados). Ele tem um livro já lançado, que rendeu uma crise que abalou o relacionamento, e a história começa a se repetir. O problema maior: em sua mediocridade como criador de histórias, Marcelo necessita que sua esposa vivencie experiências para que ele possa relatá-las no novo livro. Com ou sem ele.
Há de antemão uma séria questão moral nesta história. Para atender ao capricho do marido, Beatriz mergulha em um abismo de depravação que, de certa forma, lembra o vivido por Sonia Braga no icônico A Dama do Lotação. De provocações sedutoras a estranhos em bondes ela logo passa para encontros em inferninhos e transas com homens e mulheres desconhecidos, narrando ao maridão tudo o que acontece para que ele possa "criar" uma história de sucesso. O que Beatriz ganha com isto? O homem que ama ao seu lado. Ou seja, neste roteiro claramente machista cabe à mulher o papel da serviçal que precisa se submeter a tudo e a todos para atender aos caprichos de seu amado, que ainda por cima recebe os louros da glória. Simples assim.
Se Beatriz, o filme, ao menos assumisse este favorecimento explícito ao seu principal personagem masculino, este poderia ser mais um elemento dentro da trama apresentada. Só que o filme insiste na tese do casal que se ama tanto ao ponto de tudo valer a pena pelo outro. Neste sentido, seria ao menos justo se houvesse alguma reciprocidade, o que jamais acontece. A submissão está apenas do lado feminino, o que mais uma vez revela o roteiro tendencioso escrito, veja só, por três homens.
Este não é o único problema do longa-metragem, apenas o mais grave. Se Marjorie Estiano ao menos se esforça como a dona deste amor doentio, Sérgio Guizé em momento algum justifica o porquê de tamanha paixão. Trata-se de uma atuação apagada e sem carisma, em um personagem de paranoia crescente que pouco oferece de interessante ao espectador. Além disto, as idas e vindas de Lisboa a Madri soam desnecessárias e até pouco fundamentadas na trama como um todo. No fim das contas, a angústia da criação soa mais como faniquito de um homem mimado.
Equivocado como proposta e também na execução, Beatriz não consegue sustentar sua tese do "como te amar sem me odiar?", levantada numa das mensagens trocadas pelo casal. Mais do que isso, soa arrogante e prepotente ao defender, em pleno século XXI, uma postura tão submissa de sua principal personagem feminina.
Filme visto no 17º Festival do Rio, em outubro de 2015.