Sexo, paranoia, Estados Unidos
por Bruno CarmeloExplicando de modo sucinto, a premissa deste filme de terror pode parecer ridícula: trata-se de uma força maligna sexualmente transmissível. Quando Jay (Maika Monroe) tem sua primeira relação sexual, ela descobre que acabou de contrair algo misterioso, que passará a segui-la com intenção de matá-la, adquirindo a forma de qualquer pessoa ao seu redor, conhecida ou não. A sequência inicial, belíssima, é muito eficaz ao mostrar a seriedade desta ameaça. Ela pode, portanto, passar adiante, transando com outros rapazes. Caso um dos homens escolhidos morra, a tal força volta a perseguir a pessoa anterior na cadeia.
Esta poderia ser uma metáfora pouco sutil das DST (doenças sexualmente transmissíveis), mas Corrente do Mal vai muito além. Com essa ideia criativa, o diretor e roteirista David Robert Mitchell analisa a relação complicada dos americanos com o sexo. Jay pode transar com outras pessoas e condená-las à morte: neste caso, ela deveria transar com quem ama, ou com alguém que deteste? A moral cristã prega o sexo pelo amor e pela reprodução, mas a maldição indica o sexo como sina. E se a pessoa contaminada for atacada, e o espírito voltar a atacar Jay? Ela deve simplesmente ter relações aleatórias com qualquer pessoa?
Todas essas questões, e muitas outras, são abordadas com calma e seriedade pelo roteiro. Insinuações de estupro, prostituição, sexo plural ou sexo desinteressado passam a influenciar a sobrevivência da protagonista. Qual outro filme teria pensado em obrigar um personagem a fazer sexo para sobreviver? Além das discussões, a trama impressiona por sua naturalidade. Nenhum jovem é excessivamente sedutor ou sexualizado, nenhum é apenas inocente ou predador. Não estamos no universo malvado dos “filmes de escola” americanos, com suas castas e rituais de bullying, e sim num pacato subúrbio onde os adolescentes possuem informações suficientes sobre amor e sexo.
Os Estados Unidos são vistos de modo bastante crítico. Os adultos estão quase sempre ausentes das imagens, sugerindo um mundo de pais fracassados, que abandonaram o lar ou não mantêm vínculos afetivos com os filhos. Os jovens são igualmente melancólicos, tanto em seus empregos mal pagos quanto nas raras práticas de lazer à disposição. Retrata-se o tédio dos jovens com sutileza e interesse sociológico dignos de uma Sofia Coppola. Estamos em um cenário de crise, não apenas financeira, e sim de valores, de afetos, da noção de comunidade. O mal sexualmente transmissível evidencia o individualismo do país: é preciso pensar em si e passar adiante, nada mais. Por isso mesmo, não existe sexo por prazer ou euforia – as cenas de jovens transando são marcadas pela incômoda sensação de vazio. O autor trata de tornar esses momentos universais, focando as fachadas das casas de subúrbio de classe média, sugerindo que, dentro destas casas, existem outros jovens, outros pais ausentes. Esta é uma nação de indivíduos tristes.
As imagens de Corrente do Mal são espetaculares. Fazia muitos anos que um filme de terror não usava de maneira tão bela e inteligente os enquadramentos, as composições, a iluminação. Neste terror passado principalmente de dia, em locais abertos (sim, isso é possível), o medo vem da paranoia: quando Jay está infectada, qualquer pessoa pode caminhar em sua direção e tentar matá-la. Portanto, ela desconfia de todos, em todos os lugares. Indivíduos tornam-se agressores em potencial. Como identificar os reais assassinos antes que já estejam perto demais? Após a paranoia do sexo, o filme explora a paranoia da segurança, da violência. É preciso desconfiar de tudo e de todos. Novamente, adota-se a lógica extremista de sobrevivência em estado de guerra. Para retratar esse medo, Mitchell desliza lentamente seu enquadramento em scope para captar a sensação de que alguém está perseguindo, está olhando Jay, o tempo inteiro. O suspense é sufocante: sem a necessidade de sustos fáceis ou barulhos de portas rangendo, o filme extrai o medo da simples existência de pessoas ao redor.
Enquanto isso, a fotografia é expressiva (vide os belíssimos momentos das garotas dentro do quarto), a montagem cria ritmo enquanto respeita o tempo de cada ação, a trilha sonora impressiona pela riqueza de tons e pela melodia que remete aos mais famosos temas do cinema de horror. A progressão é tão empolgante que desperta dúvidas quanto ao desfecho: o diretor será capaz de criar um clímax e uma conclusão à altura desta narrativa? Felizmente, as sequências finais são ainda melhores que as iniciais. Sem estragar o prazer da cena, basta dizer que entram em ação o poder letal dos produtos de consumo e a figura fantasmática do pai ausente de uma só vez, enquanto a última imagem, irônica e perturbadora, alimenta o tom de paranoia. O desempenho de Maika Monroe é determinante no impacto destas cenas. Ela transmite insegurança com tamanho controle que evita qualquer senso de ridículo que poderia emanar da protagonista.
É um grande prazer assistir a uma produção de terror deste nível. No momento em que o cinema de gênero explora à exaustão as mesmas fórmulas e as mesmas representações conservadoras de homens e mulheres, este filme demonstra como o cinema de horror ainda pode criar algo original, crítico e realmente assustador. Corrente do Mal é digno dos grandes clássicos de gênero. Um filme de apelo comercial e artístico, político e estético, que honra os cânones enquanto busca seus aspectos menos explorados.