A música acalma as feras
por Bruno CarmeloA premissa deste filme é tão familiar que chega a ser curioso o fato de ninguém ter pensado nisso antes. Sing - Quem Canta Seus Males Espanta transpõe às animações o formato dos reality shows musicais (American Idol, The Voice, The X Factor) com animais antropomórficos cantando. Pode parecer inusitado adaptar um gênero que contém a palavra “reality” ao formato fantasioso dos bichos falantes, porém estamos na época em que as novidades no cinema industrial não constituem ideias totalmente inéditas, e sim a combinação de conceitos que não tinham sido misturados antes. Este é, por definição, um filme mashup.
Talvez a maior ousadia seja não ter um protagonista definido. A história é amarrada pelo coala Buster Moon, proprietário do teatro onde ocorrem os testes musicais, mas a trama alterna entre o dilema de um gorila com problemas paternos, uma porca pouca apreciada pelo marido, uma porca-espinho abandonada pelo namorado, um rato trambiqueiro e uma elefanta tímida demais para cantar, além de uma série de personagens coadjuvantes. A câmera desliza rapidamente de um rosto para um outro, de um conflito para o seguinte, atravessando bairros da cidade num simples movimento de câmera. A transição entre subtramas remete ao formato das séries de televisão, ao invés das animações infantis tradicionais.
A estrutura ramificada pode passar despercebida pelo público diante da avalanche de cores e músicas. São 85 canções famosas, com o acréscimo de uma composição original, distribuídas numa duração de 110 minutos, o que representa uma nova canção a cada 80 segundos. Temos ao mesmo tempo uma overdose de estímulos e uma proeza da edição, capaz de alternar entre tantos estilos e personagens de modo compreensível. Com tantos cortes na edição, cores na direção de arte, personagens e músicas diferentes, Sing se assemelha à temporada inteira de um reality show condensada num único filme.
Como de costume nas produções da Illumination Entertainment (Meu Malvado Favorito, Minions, Pets - A Vida Secreta dos Bichos), a coerência narrativa é sacrificada pela necessidade de piadas ou de um fundo emocional. A competição entre os bichos é inverossímil, porque nunca ficam claras as regras impostas os animais selecionados para disputar o prêmio principal. Com exceção do arrogante rato, nenhum personagem parece estar competindo com os demais. Quando todos descobrem uma informação relevante sobre a natureza do prêmio, a reação dos concorrentes - muitos deles pobres - é absurda. Pior ainda é a súbita mudança de temperamento do pai de Johnny, um ladrão violento, ao ouvir o filho cantar.
Sing - Quem Canta Seus Males Espanta resgata a ideia romântica de que a música acalma as feras, e vai além: a música, nesse contexto, permite alcançar todos os sonhos, resolver conflitos entre pais e filhos, resgatar o amor entre maridos e esposas e impor a ordem social numa megalópole caótica. Não é por acaso que os dinâmicos personagens só se concentram durante a apresentação final, organizada sobre um palco em ruínas: a canção é vista como uma espécie de cola social, uma idealização do princípio de solidariedade e da reinvenção de si próprio.
O diretor Garth Jennings oferece um grande espetáculo na apresentação final, intensificando os ruídos, o volume das canções e a carga emocional num clímax catártico. Por incrível que pareça, o roteiro encontra uma maneira de amarrar os seus fios soltos e ligar, de modo orgânico, a trajetória de todos os bichos. No meio do caos pop surge um filme sonhador, de valores clássicos, adaptado à sensibilidade do século XXI.