Nós, os deuses
por Francisco RussoGoste-se ou não, fato é que Seth Rogen tem hoje uma das carreiras mais coerentemente consolidadas em Hollywood. Por mais que de vez em quando se arrisque em produções alienígenas (para o seu padrão), como O Besouro Verde e Steve Jobs, Rogen se tornou sinônimo de comédias politicamente incorretas que usam e abusam do sarcasmo e cinismo - que o digam É o Fim, Segurando as Pontas, Vizinhos, A Entrevista e outras tantas. Não é exagero dizer que Festa da Salsicha, sua primeira animação, é o ápice de tudo o que tem defendido em seus filmes, à enésima potência - e isto é ótimo! Trata-se de um dos filmes mais ousados e insanos já produzidos em Hollywood nos últimos anos.
A começar pela proposta do longa-metragem. Aqui, os heróis são os alimentos encontrados em qualquer supermercado. Com perfil humanizado, eles anseiam o momento em que serão escolhidos pelos humanos - os deuses, segundo eles - para serem levados ao paraíso, ou seja, o que há além da porta de entrada do estabelecimento. Só que os alimentos não têm a menor ideia do que os espera: a morte certa, seja cortado, ralado, picotado ou triturado.
Há duas vertentes muito claras que surgem a partir desta ambientação. A primeira, escancaradamente boca suja, coloca um sem número de xingamentos e piadas de cunho sexual ou preconceituoso na boca dos próprios alimentos. O próprio desenho e a escolha dos personagens também leva isto em consideração, buscando a imediata associação visual com os órgãos sexuais masculino e feminino. Por mais que se saiba desde o início que Festa da Salsicha seja uma animação voltada para maiores, tal opção surpreende não apenas pelo contraste inevitável com o tom infantil que boa parte das animações costuma ter, mas também pelo inusitado de certas falas, sem qualquer pudor. Só que, por outro lado, tal insistência cansa. É como se fosse uma piada insistentemente repetida, que até provoca risos de início mas, aos poucos, demonstra esgotamento.
Dito isto, é na vertente implícita que está o lado mais interessante de Festa da Salsicha. Por mais que faça rir (muito) com certas associações e diálogos, o brilho maior do roteiro escrito pelo quarteto formado por Rogen, Evan Goldberg, Kyle Hunter e Ariel Shaffir está nas entrelinhas. Se há analogias claras como a eterna briga entre árabes e judeus, aqui representados por um bagel e um pão sírio (?), há também uma crítica ácida à religião, presente na recusa dos demais alimentos em aceitar a realidade fora do supermercado, por mais dura que seja. A crença nos deuses, que eles queiram promover o melhor sem que haja qualquer indício para tanto, é um retrato do que acontece no mundo real, onde as pessoas entregam suas vidas sem qualquer questionamento - e o roteiro, de forma bastante hábil, contesta isto. "Não basta criticar a crença deles, precisa mostrar um caminho melhor" é daquelas falas iluminadas, que tão bem sintetizam não só o que é exibido na telona mas todo o conflito religioso existente nos dias atuais.
Da mesma forma, Festa da Salsicha defende com unhas e dentes algumas ideologias. Uma delas é a diversidade sexual, seja através da existência de personagens gays relevantes na história ou da desconstrução de preconceitos arraigados na sociedade, presentes especialmente na conversa entre a bisnaga Brenda e Teresa del Taco. Há no filme a defesa do prazer, independente do gênero envolvido, cujo ápice surge no inacreditável (e maravilhoso) desfecho. Da mesma forma, a animação assume a defesa das drogas, não propriamente no sentido do vício mas de que elas possam abrir a mente para verdades ocultas. Tal associação inclusive resulta na grande virada do roteiro, que faz com que o filme recupere o fôlego após um certo cansaço, diante de tantas ofensas gratuitas.
Festa da Salsicha oferece ainda várias outras belas sacadas que merecem destaque, como o fato de que os homens (e a chuca) se tornarem mais fortes após matar alguém - analogia à situação de vencedores e vencidos em qualquer guerra -, as brincadeiras envolvendo animação em 2D e os próprios dubladores originais do longa-metragem ou até os breves acordes com as músicas-tema de Jurassic Park, O Exterminador do Futuro e E.T., que surgem sem aviso prévio de forma a fazer a alegria do cinéfilo atento. Mais até do que fazer rir, o que consegue com propriedade e em vários momentos, trata-se de um filme que busca o escracho e o extremo de forma a fazer também refletir, nem que seja através de associações disfarçadas - às vezes nem tanto. A animação, de certa forma, também pode servir de reflexão e crítica à nossa sociedade atual.
Por outro lado, Festa da Salsicha não é um filme para todos. Seu conteúdo liberal pode soar ofensivo para algumas pessoas, especialmente aqueles que carreguem consigo ideais mais conservadores. Entretanto, quem tiver a mente aberta terá a oportunidade de conferir um dos filmes mais divertidos e surpreendentes do ano, seja pelos diálogos politicamente incorretíssimos, pelas brincadeiras com os formatos da própria animação e, especialmente, pela profundidade de um roteiro que, ao mesmo tempo, mostra-se tão acessível ao grande público. Um filme para rir muito, mas também para olhar à sua volta.