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    A Travessia
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    A Travessia

    Truque de mágica

    por Bruno Carmelo

    Em 1974, o equilibrista francês Philippe Petit ganhou as manchetes do mundo inteiro ao fazer uma travessia ilegal de mais de 40 metros sobre uma corda de aço, presa ao topo das Torres Gêmeas – que eram, na época, os prédios mais altos do mundo. No final do percurso, foi preso pela polícia americana. Esta é uma “história real”, como lembram os letreiros iniciais, e já deu origem a um documentário dirigido por James Marsh. Mas A Travessia segue um caminho diferente, transformando a façanha de Petit em uma experiência de fantasia.

    Robert Zemeckis aborda a façanha do título com as ferramentas do cinema mágico: sua câmera faz contorcionismos de todos os tipos, voando aos céus e mergulhando ao chão, com imagens mudando entre o colorido e o preto e branco, o acelerado e a câmera lenta. O cinema torna-se um espetáculo análogo ao circo, local onde o jovem Petit (Joseph Gordon-Levitt) faz sua formação de equilibrista e malabarista. A habilidade física excepcional de caminhar sobre uma corda é vista como um truque qualquer, comparável às ilusões dos mágicos ou às ilusões do próprio cinema, com seus efeitos de edição e computação gráfica.

    Visualmente, estamos no mesmo registro frenético e colorido de Forrest Gump – O Contador de Histórias, também de Zemeckis, ou Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, de Tim Burton. O caráter espetacular é reforçado pela narração do próprio Petit, que conta sua história em flashback, do alto da Estátua da Liberdade (marco simbólico, por ser um presente da França aos Estados Unidos), enfatizando cada parte do plano e cada sentimento do protagonista. A voz off é redundante, mas garante que ninguém perca detalhes da trama. Este é um cinema pipoca adequado ao público médio contemporâneo, que deseja receber uma avalanche de estímulos visuais e sonoros, porém sem ambiguidades. Tudo precisa ser devidamente mastigado.

    Esta facilidade se traduz em uma narrativa sistemática como nos manuais de roteiro de Syd Field. Todas as cenas cumprem uma função muito precisa: o protagonista encontra uma garota (Charlotte Le Bon) ao acaso, e na mesma cena ela se torna sua namorada; ele conhece um fotógrafo (Clément Sibony) que se transforma no melhor amigo, ele descobre outro equilibrista (Ben Kingsley) que logo vira um mentor. Petit é rejeitado pelos pais, mas parece não se importar; ele decide elaborar seu plano nos Estados Unidos, e não encontra obstáculos. Não há tempo para psicologismos. Nem mesmo os treinos do equilibrista parecem oferecer riscos reais à sua vida.

    Na segunda metade da história, quando o plano da travessia é posto em ação, o filme muda sensivelmente. De repente, tudo são dificuldades: o World Trade Center é vigiado por policiais, Petit machuca o pé pouco antes do dia marcado, ele ganha como assistente um sujeito com medo de altura, a corda ameaça se desprender. Talvez outros obstáculos fossem mais realistas, como a questão financeira – como um artista de rua, sem profissão fixa, conseguiu colocar em prática um plano tão caro? – mas a produção prefere deixar essas questões técnicas de lado. Com trilha sonora retumbante e imagens vertiginosas (intensificadas pelo 3D ostensivo), A Travessia se transforma em um filme de sensações, manipulando as emoções do público para provocar a máxima tensão possível. Até subtramas desnecessárias (traição de amigos, possível infidelidade da namorada) são acrescentadas à história para aumentar os riscos de fracasso, mesmo que a narração de Petit, em flashback, já confirme o sucesso da empreitada.

    No que diz respeito à imersão do espectador, o filme funciona muito bem. Não se trata de uma obra sutil, e Zemeckis não possui essa pretensão. O projeto adquire uma aparência desabusada e jovem, através da atuação cool de Joseph Gordon-Levitt (caprichando no charme, no sotaque, sem transpirar uma gota sequer em sua elegante caminhada) e no uso pop dos movimentos de câmera, dignos de um cinema de parque de diversões. No mesmo ano de 2015 que apresentou os efeitos mecânicos e realistas de Mad Max – Estrada da Fúria e Missão Impossível – Nação Secreta, talvez A Travessia pareça falso demais. Mas a intenção é essa: extrapolar a “história real” para atingir uma fábula mágica sobre coragem, liberdade e luta pelos sonhos.

    Apesar de ser a biografia de um francês, o filme termina como hino aos valores americanos (chega a ser engraçado ver todos aqueles franceses conversando em inglês entre si). As cenas finais destacam o mérito do empreendedorismo e do self made man, do homem que tudo pode se tiver força de vontade. O discurso heróico é projetado, ironicamente, sobre a imagem persistente das Torres Gêmeas, símbolo da fragilidade bélica americana e da soberba dos Estados Unidos em seu plano imperialista. Pelo menos no cinema hollywoodiano, os planos impossíveis ainda dão certo, o World Trade Center brilha magnificamente ao pôr do sol e os heróis concluem suas perigosas travessias com um sorriso nos lábios.

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