A jornada do herói
por Bruno CarmeloEntre os diversos retratos de heróis no cinema americano encontra-se a figura do intelectual ou cientista. Trata-se geralmente de homens, excêntricos, com dificuldades de relacionamento amoroso e social por dedicarem todas as suas horas à ciência. O imaginário romântico do mártir à frente do seu tempo se desenvolveu muito antes do cinema, mas encontra nas cinebiografias um ótimo meio de expressão: é com a imagem em movimento que se capta a determinação crescente de indivíduos que lutam contra a voz da maioria. Não é à toa que, na França, Um Homem Entre Gigantes ganhou o título “Sozinho Contra Todos”.
Na trama, o Doutor Bennet Omalu (Will Smith) é uma representação da minoria por excelência: ele é negro em meio a vários médicos brancos, é estrangeiro entre americanos, tem quase uma dezena de diplomas contra uma porção de profissionais medíocres. Omalu também é um poço de integridade diante dos perversos homens ao seu redor – o legista inclusive conversa amigavelmente com os cadáveres antes de dissecá-los. Sem surpresas, ele é um homem solitário, que chega ao trabalho mais cedo e vai embora depois dos colegas. Além disso, vive mergulhado nos livros, com a cara séria, imerso em laboratórios, casas e bares inexplicavelmente escuros. Ah, claro, Omalu não namora, nem sabe flertar com mulheres.
O retrato das virtudes do herói é tão exagerado que beira a caricatura. As transformações em sua trajetória são didáticas ao extremo: quando descobre um tipo de doença que afeta atletas de futebol americano, causada pelas colisões na cabeça, ele explica a uma enfermeira qualificada que o cérebro não está colado no crânio, e pega um jarro de vidro para uma demonstração de nível escolar. Quando discute com um homem especializado em medicina esportiva, afirma espantado que os jogadores de futebol batem a cabeça com força durante as partidas, algo apresentado como uma descoberta genial e improvável.
Apesar de morar nos Estados Unidos há anos, Omalu descobre através de colegas que a NFL é uma empresa grande, poderosa, e ouve de um amigo próximo que talvez os empresários não fiquem contentes de ouvir questionamentos à saúde dos atletas. A inocência do protagonista beira a infantilidade: basta ver seus olhos arregalados quando assiste pela primeira vez a duas cabeças se chocando numa partida de futebol americano, em câmera lenta, enquanto o som capricha nos ruídos. Logo, percebe-se que Um Homem Entre Gigantes trata menos de ciência do que da percepção cultural que o cidadão médio possui da ciência: ao invés de tornar o conhecimento mais acessível, esconde-se sua complexidade – a doença nunca é descrita em detalhes – para manter apenas o respeito típico dos leigos pela suposta figura de autoridade, no caso, o cientista, o “doutor”.
O didatismo da narrativa é acentuado pela atuação de Will Smith. De olhos lacrimejantes e voz doce, ele fica indignado diante das injustiças, mas seria incapaz de machucar quem quer que seja. Omalu é descrito como um bom selvagem, um ser puro entre as feras, numa representação que beira o exotismo e o preconceito: por ser africano, veja só, ele faz explicações de anatomia humana com a ajuda de metáforas sobre animais selvagens. Ao mesmo tempo, é curioso que este médico altamente qualificado se explique com vocabulário complexo diante de um tribunal, mas tenha seu sotaque africano acentuado e o linguajar empobrecido quando conversa com amigos e com a futura esposa.
Os demais personagens possuem distribuição irregular. Por um lado, os ótimos Albert Brooks e Alec Baldwin trazem uma dose bem-vinda de realismo e descontração ao clima pomposo da trama, por outro lado, Gugu Mbatha-Raw é tristemente subaproveitada, numa personagem sem conflitos nem profundidade. Ela funciona apenas como a esposa do protagonista, ou seja, um par romântico obrigatório e uma pessoa para escutar suas explicações científicas. Aliás, nenhuma mulher na trama possui importância: elas se resumem a esposas, mães e assistentes das figuras masculinas.
O conservadorismo não para por aí. Um Homem Entre Gigantes valoriza a glória de ser americano, defendendo a superioridade do país em relação ao resto do mundo, e cita a importância da religiosidade uma dezena de vezes, como se a religião fosse uma obrigação moral ao invés de uma escolha pessoal. Critica-se a violência do futebol americano, mas quando Omalu finalmente ganha a oportunidade de falar em público, ele evita qualquer discurso médico para declamar uma ode à beleza deste esporte tipicamente americano. A cidade de Pittsburg também é retratada de modo idealista: várias cenas ocorrem diante de cartões postais, sem motivo aparente para que os personagens se encontrem naqueles locais além da beleza do cenário.
Por fim, toca-se o dedo na ferida, mas sem querer machucar de verdade. Na intenção de atingir um público amplo, Landesman acovarda-se e atenua seu discurso. O resultado é uma obra irregular: os méritos são evidentes, como a produção bem executada, a boa distribuição de etnias – é importante para o filme mostrar que existem brancos e negros tanto do lado dos mocinhos quanto dos bandidos – e a vontade de criticar a ganância empresarial numa época em que candidatos à presidência como Bernie Sanders atacam o cerne do capitalismo. Ao mesmo tempo, o discurso é tão unilateral que se distancia do realismo: todos os atletas em cena sofrem da doença descoberta, todos os investigadores do FBI são mafiosos, todos os executivos são corruptos. A simplificação pode fazer parte de uma pedagogia bem-intencionada, mas impede o retrato complexo dos temas abordados.