Somos todos desprezíveis
por Bruno CarmeloAlguns roteiristas acreditam que personagens complexos são aqueles com muitos problemas no passado: doenças incuráveis, traumas na infância, segredos inconfessáveis, distúrbios mentais. De acordo com este raciocínio, problemas cotidianos não renderiam material suficiente para o cinema. Seria preciso exteriorizar todo conflito íntimo, ampliá-lo, somá-lo a outros, para o público pode compreender as dores dos personagens. Este pensamento minimiza a capacidade do diretor em criar metáforas, além de subestimar a capacidade do público em compreender silêncios e sutilezas.
Oren Moverman, diretor e roteirista de O Jantar, adota esta linha patologizante de narrativa. Em torno do evento do título, ele reúne quatro adultos de classe média-alta na intenção de revelar gradativamente os crimes e culpas de cada um. Se os casais formados pelo professor Paul (Steve Coogan) e sua esposa Claire (Laura Linney), e pelo político Stan (Richard Gere) e sua esposa Barbara (Rebecca Hall) não aparentam ser muito simpáticos a princípio, espere só para descobrir o que já fizeram em suas vidas, e o que ainda pretendem fazer no futuro. Descubra então a criação que receberam dos pais, e como criam os próprios filhos, para perceber que o roteiro sugere um ciclo ininterrupto de manipulação e maus-tratos.
O problema inicial do filme encontra-se nesta psicologia fácil: pais frustrados geram filhos frustrados, que gerarão netos frustrados e assim por diante. A frase de Shame, “Nós não somos pessoas ruins, apenas viemos de um lugar ruim” funciona como justificativa e isenção de responsabilidade aos quatro bárbaros ao redor da mesa. Sim, eles cometem e cometeram atos errados, mas como poderiam ter agido de outro modo? O determinismo é tão flagrante que não cogita a possibilidade de superação de um trauma. Talvez O Jantar pudesse ser chamado de niilista, mas isso seria ignorar o fato que esta filosofia enxergava na aceitação da insignificância humana uma forma de superação da nossa condição. Ou seja, o niilismo seria uma forma de pacificação.
Este projeto age da maneira contrária, denunciando cena após cena a decadência da sociedade contemporânea. Aos poucos descobrimos que os filhos dos dois casais cometeram um ato abominável, algo que todos pretendem discutir sem realmente analisarem as implicações éticas do mesmo. Impossível, é claro. Entre interrupções do garçom e constantes ligações para o político atarefado, o roteiro posterga a inevitável explosão entre os adultos, apenas para relembrar, em flashback, as lutas que vêm travando em suas famílias há anos. “Quantos imbecis morreram em guerra?”, o professor de História provoca os seus alunos. Ele não conclui o raciocínio, mas sugere que a selvageria teria o mérito de nos privar de algumas pessoas nefastas, ou pelo menos das mais fracas – um tipo de darwinismo social que o roteiro defende plenamente rumo à conclusão.
O Jantar deseja fornecer um discurso afiado sobre a contemporaneidade, no modelo huis clos de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e Deus da Carnificina. Ora, nestas duas obras, acenava-se à possibilidade de fuga ou a uma dialética capaz de superar as vontades opostas: para viver em sociedade, é preciso fazer concessões. Porém Moverman não vislumbra qualquer possibilidade de convívio social para além da autodestruição física e psicológica. Os embates são retratados com evidente prazer e cinismo, cores saturadas e letreiros culinários (entrada, prato principal, sobremesa) pautando as brigas em cena. Sim, a intenção é degustar o declínio alheio. O cineasta não possui compaixão real por nenhum personagem – muito menos pelos filhos delinquentes, nem pela vítima do crime. O projeto revela um conformismo abjeto com o fascismo que pretende denunciar.
Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.