Retratos da ditadura
por Bruno CarmeloSetenta chega aos cinemas brasileiros em um ano muito particular, quando se relembra os cinquenta anos do golpe militar. Este também é o momento em que a Comissão Nacional da Verdade tenta restaurar os fatos por trás das numerosas violações de diretos humanos durante a ditadura. O documentário relembra os fatos ocorridos neste período, e embora existam dezenas de filmes brasileiros dedicados ao tema, é igualmente verdade que nosso acerto de contas com o passado está longe de ter terminado, e que ainda existe muito a dizer.
A diferença deste filme em relação ao demais é o seu enfoque nas histórias pessoais, ao invés dos bastidores políticos. A diretora Emília Silveira conversou com vinte membros do grupo de setenta militantes que foram expatriados para o Chile após o sequestro do embaixador suíço no Brasil. Ao invés de fornecerem um panorama geral dos embates entre os militares e os jovens revolucionários, eles se concentram em lembranças pessoais: o primeiro amor durante a ditadura, o dia em que precisaram fazer uma viagem disfarçados, o suicídio de uma amiga, a dificuldade de falsificar passaportes em casa. Todos estes episódios são cheios de significado, por associar ao domínio privado uma esfera tradicionalmente pública.
A vantagem desta iniciativa é poder chegar mais perto dos personagens, e perceber nas entrelinhas a distância que estes militantes tomaram em relação às suas atitudes quando jovens. É um prazer observar este grupo culto e desenvolto discorrer tão bem sobre as suas motivações, ao mesmo tempo em que refletem sobre a (im)possibilidade da luta armada nos dias de hoje. Neste sentido, Setenta é menos um filme histórico do que uma obra política – embora não partidária. A diretora descreveu seu trabalho como “não ideológico”, um termo contestável, mas significativo da intenção de permanecer perto das individualidades, e não do discurso coletivo. Neste sentido, a obra se aproxima da estrutura do diário, do álbum de retratos.
O problema de Setenta é seu formato. O documentário segue à risca o modelo mais limitado do gênero, alternando depoimentos e imagens de arquivo, nada mais. Não existe uma reflexão muito profunda sobre a linguagem cinematográfica, e mesmo os aspectos técnicos deixam a desejar quando se percebe que a iluminação entre as entrevistas é bastante desigual. O cinema, quando pretende ser uma arma de conscientização, não pode valer apenas pelo seu conteúdo, ele precisa se associar a um uso específico da linguagem. Mas Setenta põe o discurso em primeiro lugar, deixando seu valor como obra de arte em segundo plano.
Rumo ao final, o conjunto muito interessante de discussões envereda pelo sentimentalismo, quando alguns entrevistados falam dos familiares distantes e falecidos. É uma conclusão pouco empolgante a uma obra que, de maneira geral, consegue representar de maneira eficiente o peso que a ditadura teve dentro da casa das pessoas, em seu dia a dia, em suas famílias e em suas histórias de amor.