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    Uma Nova Amiga
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Uma Nova Amiga

    Esse obscuro objeto do desejo

    por Bruno Carmelo

    A primeira cena deste filme é perturbadora: a câmera passeia pelo cadáver de uma jovem garota, sendo vestida de noiva. Enquanto o corpo é maquiado, a trilha sonora apresenta a marcha nupcial. Vida e morte, casamento e ruptura: muitos elementos estão bem representados nestas belas imagens, que ditam o tom do sombrio e poético Uma Nova Amiga.

    O projeto se inscreve como sequência direta de Dentro da Casa, também do diretor François Ozon. O título desta obra anterior funcionaria igualmente bem para a história de Claire (Anaïs Demoustier), que acaba de perder a sua melhor amiga – o tal cadáver do início – e David (Romain Duris), o viúvo. Em ritmo ágil, o primeiro ato apresenta a relação turbulenta entre Claire e David que, por amarem a mesma pessoa (seja amigavelmente ou romanticamente), acabam sentindo ciúme um do outro, e se repelindo. O homoerotismo nasce nesta cena, quando fica clara a atração de Claire (cujo nome significa justamente “clara”, “evidente”) por sua melhor amiga.

    Ainda na primeira parte, descobre-se – quando ela entra na casa alheia sem permissão, assim como nos contos de fada – que David gosta de se vestir de mulher. É estranho que o material promocional do filme (trailers e cartazes) tenha evitado essa informação que não constitui um spoiler, e sim funciona como motor narrativo essencial à trama. David, heterossexual convicto, gosta de se vestir de mulher dentro de casa. O roteiro engenhoso de Ozon faz questão de tornar este desejo complexo, associando-o ao luto: o marido entristecido usa as roupas da mulher para se sentir mais próximo dela, para transmitir à filha pequena a sensação de ainda ter uma mãe. A esposa inclusive conhecia este hábito, e apoiava o marido. O travestimento torna-se prova de amor.

    Segue então um intricado jogo de desejos entre Claire e David. Uma Nova Amiga poderia desembocar em soluções fáceis, como a descoberta da homossexualidade do personagem masculino, ou o caso amoroso entre a dupla central. Mas o roteiro constrói a evolução do erotismo de maneira exemplar: ora os dois se atraem, ora se repudiam, depois chegam mais perto, e em seguida se arrependem e recuam. Cada toque de mãos é uma revolução, cada vez que as pernas se encostam sob a mesa, uma transformação ocorre dentro dos dois. A estrutura narrativa se assemelha a jogo de xadrez, onde o movimento de cada peça leva à reação do outro, à criação de uma nova estratégia de ataque ou defesa.

    Estamos em terreno simbólico, psicanalítico. É notável que o filme retire a influência da sociedade: nas poucas ocasiões em que David torna-se Virginia em público, ele praticamente não sofre preconceito. Este não é um filme militante, engajado. Ele é um estudo de caso, uma prova do que os adultos são capazes de fazer por trás das paredes de suas casas. Ozon sempre foi um mestre – melhor do que Pedro Almodóvar, aliás – em explorar as transformações da paixão e as tensões domésticas, como já comprovou em Dentro da Casa, Gotas d’Água Sobre Pedras Escaldantes, Sob a Areia, 8 Mulheres, Swimming Pool e tantos outros filmes.

    Este pode parecer um “filme de roteiro”, no qual as inúmeras reviravoltas se sobrepõem à mise en scène. Mas Uma Nova Amiga demonstra um domínio invejável de Ozon na direção, deslizando a câmera pelos corpos nos momentos necessários, explorando com maestria os espaços e proporcionando momentos de briga doméstica com a mesma intensidade que retrata o sexo. Anaïs Demoustier está excelente no papel central, evoluindo da rispidez à cumplicidade, enquanto Romain Duris passa da fragilidade à segurança de si. Talvez os coadjuvantes não tenham um desenvolvimento equivalente, mas a narrativa prefere deixar em segundo plano o mundo exterior para se concentrar na fascinante valsa entre David e Claire.

    Esta produção perturbou críticos e espectadores quando foi lançada, justamente por fugir a tantos estereótipos aguardados, a tantas muletas nas quais costumamos nos apoiar para estabelecer julgamentos e interpretações. Nenhum personagem pode ser descrito por rótulos de sexualidade ou gênero muito claros, e este é justamente o seu mérito: retratar o desejo humano como algo permeável, fluido, em constante transformação. O tema da transformação – do travestimento à morte – faz de Uma Nova Amiga um estudo de caso complexo e elegante sobre a natureza humana.

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