Rocky - O Legado
por Bruno CarmeloO projeto de Creed - Nascido Para Lutar é bastante arriscado. A franquia Rocky tinha sido muito bem concluída com Rocky Balboa (2006), que amarrava elementos desde o primeiro filme da saga, e lidava com a questão do envelhecimento do boxeador à medida que novas gerações apareciam. Portanto, a proposta de uma espécie de sequência, ou spin-off com o filho de Apollo Creed, poderia soar deslocada.
O jovem diretor Ryan Coogler tem consciência de estar mexendo em um terreno espinhoso, e encara com maturidade o paradoxo das sequências de clássicos: é preciso fornecer novamente os elementos que cativaram a plateia, ao mesmo tempo que se oferece inovações, para não se transmitir a impressão de simples cópia - caso em que o filme original, fortalecido na memória, sempre vence.
Coogler se sai bem nas duas vertentes. No que diz respeito à continuidade, ele resgata os elementos famosos, como a escadaria, as músicas-tema e as montagens aceleradas durante os treinos. Mas a boa notícia é que nenhuma dessas peças-chave aparece da maneira esperada: o diretor consegue subverter os símbolos da franquia, mexendo com a duração das cenas e com seu uso ao longo da narrativa. Do mesmo modo, existem dezenas de referências a todos os filmes anteriores, com exceção do execrado Rocky V (1990), que entretanto teria conexões evidentes com a trama de 2015, sobre um novo pupilo de Rocky. O roteiro introduz as citações de modo discreto (as tartarugas, o restaurante, o treinamento com as galinhas etc.), buscando agradar os fãs da franquia sem inviabilizar a compreensão de quem nunca viu qualquer filme da série.
No que diz respeito à inovação, Creed - Nascido Para Lutar deseja funcionar como filme autônomo. À frente de um roteiro da série pela primeira vez (todos os outros foram escritos por Sylvester Stallone), Coogler cria um ritmo de diálogos bem diferente, introduz personagens femininas mais fortes, adiciona uma mistura de hip hop e música eletrônica à trilha sonora, e ousa filmar uma cena de combate em belos e longos planos-sequência, que contrastam bastante com a montagem fragmentada de todas as lutas de Rocky até aqui. Em seu segundo filme, o cineasta faz questão de criar um projeto pessoal, demonstrando autoconfiança e coragem.
Como se poderia esperar, nem todas as tentativas de inovação funcionam muito bem. O Rocky articulado e inspirador de Creed é um pouco distante da construção crua dos filmes anteriores, e apesar de uma cena emocionante no vestiário (Sylvester Stallone sempre atua muito bem no papel do solitário lutador), o momento no cemitério não explora o potencial emotivo do roteiro. Adonis (Michael B. Jordan) também não possui uma trajetória com motivações muito bem desenvolvidas quanto à ausência do pai e à relação com a mãe adotiva, simplesmente abandonada pelo jovem quando ele passa a treinar. Além disso, a inclusão forçada do romance com uma vizinha (Tessa Thompson) pouco acrescenta à trama. Pelo menos, é bom ver Michael B. Jordan mais contido do que em Fruitvale Station - A Última Parada, e poder descobrir o talento de Tessa Thompson.
O filme aposta suas fichas no impacto da cena de luta. Coogler usa e abusa das ferramentas do ultrarrealismo, com suor, sangue espirrando e corpos caindo brutalmente no chão. Os efeitos sonoros tornam o embate visceral, mas o uso de câmera lenta e de planos inclinados é tão exagerado que beira o preciosismo. Talvez esta estética perversa, que degusta em planos próximos cada osso quebrado e cada gota de sangue derramada (algo também presente em Nocaute, de 2015), seja o novo kitsch dos nossos dias, assim como pareciam cafonas os zooms e as sobreposições de Rocky III (1982) e Rocky IV (1985). Esses recursos poderão soar datados mais tarde (ah, a cena do flashback durante a luta!), mas em termos de imersão do espectador, Creed - Nascido Para Lutar atinge seus objetivos, brincando habilmente com os nervos do espectador.
Existe igualmente espaço para humor e para alguns comentários sobre envelhecimento e proximidade com a morte, embora estas questões já tenham sido abordadas com maior sensibilidade em Rocky Balboa. A conclusão deve trazer uma sensação de déjà vu - positiva ou negativa, a gosto. O fato é que o roteiro discute com propriedade a questão do legado, da transmissão de uma marca às gerações posteriores. Adonis Creed é uma mistura perfeita dos dois maiores ícones da saga: ele tem o sangue, a aparência e o vigor do pai Apollo, mas é construído como um azarão deslocado socialmente, aos moldes de Rocky. Creed constrói simbolicamente um filho de Rocky e Apollo, um homem que só pode ter sucesso quando abandona seus traumas, sua vida de luxo e sua imagem pré-fabricada pelo marketing para lutar com suas próprias motivações, pelas ruas pobres e barulhentas da Filadélfia. Neste sentido, o sétimo filme da franquia se insere muito bem na mitologia popular e humanista da saga Rocky.
Filme visto em pré-estreia na Filadélfia, em novembro de 2015. O AdoroCinema viajou a convite da Warner Bros. Brasil.