Brincando com Deus
por Bruno CarmeloDeus (Benoît Poelvoorde) é um homem alcoólatra, perverso, que maltrata a esposa e a filha pequena. Ele fica entediado na sua casa, por isso inventa acidentes, catástrofes naturais, doenças e outros obstáculos para tornar a humanidade mais divertida. Este é o ponto de partida de O Novíssimo Testamento, fantasia belga sobre um divino criador sem poderes, apenas pulsões tipicamente humanas e condenáveis. Ele não desenvolve o mundo por amor, e sim por tédio. Todos nós somos uma espécie de videogame do todo-poderoso.
O filme de Jaco van Dormael inicia com esta ideia ao mesmo tempo criativa e subversiva. A premissa se desenvolve quando a filha revoltada se vinga de Deus, divulgando a todos os seres humanos (via SMS) a data e hora exatas de suas mortes. O potencial narrativo desta indagação é excepcional: se as pessoas sabem quando vão morrer, por que precisariam trabalhar, respeitar as regras, fazer o bem ao outro? Se têm a sobrevivência garantida, porque temeriam a Deus e respeitariam a moral religiosa?
O cineasta não leva a premissa tão longe quanto fariam, por exemplo, Monty Python e outros questionadores da religião. A ideia é menos parodiar do que sonhar, usar personagens conhecidos numa espécie de fábula multicolorida e adocicada. Estamos mais próximos dos universos de Alice no País das Maravilhas e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain do que das piadas ácidas de A Vida de Brian, por exemplo. Mesmo assim, o filme permite imaginar diversas consequências hilárias da descoberta da morte.
Apesar da presença de Deus, a protagonista é a filha Ea (a ótima atriz mirim Pili Groyne), que narra sua revolta pré-adolescente enquanto questiona os atos divinos. Sua tarefa é construir um novo testamento, com profetas escolhidos ao acaso, e um texto redigido pelo primeiro mendigo que cruza o seu caminho. As crianças – incluindo dois garotinhos, também narradores – fazem um ótimo trabalho nesta obra de alma essencialmente infantil, pura e otimista.
Em termos de imagem, isso se traduz numa estética assumidamente kitsch. São muitas cores, texturas e efeitos especiais para ilustrar sonhos e milagres. Talvez os melhores momentos ocorram com a fantasia concreta, analógica – o falso braço da profeta Aurélie, os sonhos eróticos do profeta Marc – e se percam um pouco rumo à conclusão, quando o cineasta pesa a mão nos efeitos especiais e imagina uma orquestra de pássaros adestrados, ou um peixe fantasma cantando para alegrar os sonhos de um personagem moribundo.
Nem tudo faz sentido, o que não parece incomodar o roteiro de O Novíssimo Testamento. O projeto elimina as regras morais do texto bíblico para substitui-las por uma única mensagem – no caso, amai-vos uns aos outros. Para essa mensagem um tanto simples, ele conta felizmente com um elenco irretocável, incluindo alguns dos melhores comediantes belgas (François Damiens, Benoît Poelvoorde, Yolande Moreau) com o acréscimo notável de Catherine Deneuve, num papel frívolo e libertino.
O filme não será para todos os gostos, tanto pelas imagens absurdas quanto pelo fato de não explorar a fundo as consequências filosóficas da premissa. No entanto, dentro de sua promessa, ele se cumpre muitíssimo bem: a fantasia encontra uma estética precisa (sem movimentos de câmera mirabolantes) e o discurso se fecha de modo claro. Termina-se por oferecer uma obra criativa, de ambições levemente anárquicas – tão anárquicas quanto poderia ser uma criança travessa. Mas o cinema também tem espaço para algumas travessuras.