Construindo o passado
por Bruno CarmeloNos primeiros minutos deste documentário, não há nada além de uma tela preta. O som indica que o diretor Cristiano Burlan está fazendo uma ligação ao necrotério, perguntando como resgatar os restos mortais de seu irmão. Segue uma conversa profissional e fria com a atendente, tratando de exumação e procedimentos burocráticos sobre a remoção de ossos. Este início pouco sentimental dita o tom do filme inteiro.
As imagens logo aparecem, mas o som continua dominando a narrativa. Conhecemos, pela narração do cineasta, as circunstâncias imprecisas do assassinato de Rafael Burlan, aos 22 anos de idade. Aparentemente, teria sido por causa do roubo de um carro; aparentemente, o jovem estaria cobrando o seu pagamento por um roubo efetuado. É possível que ele estivesse envolvido na venda de drogas também. Na verdade, isto pouco importa ao cineasta: ao invés de muitos documentários que utilizam fatos para reconstruir a verdade, ou uma versão dela, Cristiano Burlan está mais interessado na pluralidade de versões e percepções sobre Rafael.
O filme adota uma abordagem íntima e pessoal. Nada de recortes de jornal, de conversas com policiais. Os entrevistados são os outros irmãos do diretor, a tia, um amigo próximo, o primo, a ex-esposa. O primeiro grande mérito destas conversas é o distanciamento: como os fatos ocorreram há muitos anos, os envolvidos conseguem falar a respeito com uma mistura saudável de razão e emoção. O segundo mérito é a naturalidade das entrevistas. Os ambientes não são posados, nem as luzes construídas: os familiares falam dentro das cozinhas e quintais de suas casas, enquanto colocam um bolo na mesa ou lavam a roupa. A proximidade do cineasta com estas pessoas faz com que todos se sintam à vontade, permitindo que vizinhos invadam os depoimentos e participem também.
A abordagem sincera difere Mataram Meu Irmão de tantos outros documentários autobiográficos sobre membros da família dos diretores. Ao invés de fazer uma homenagem, de prestar justiça ao falecido, Burlan expõe as fragilidades de sua família com uma honestidade brutal. Ele não interrompe os longos depoimentos, com as pessoas versando sobre o pai alcoólatra e irresponsável, sobre o outro irmão, pouco confiável e assim por diante. Não há piedade nem julgamentos, apenas uma tentativa difusa de compreender porque e como o irmão foi morto. É inevitável que os familiares se questionem sobre as razões, e que formulem hipóteses diferentes. Do carinho da tia à franqueza do amigo próximo, o espectador obtém uma versão voluntariamente abstrata e fragmentada do falecido Rafael.
A construção do passado também ocorre por outras escolhas do diretor. Além de não mostrar imagens do irmão, deixando o espectador imaginá-lo através dos depoimentos, ele opta por pequenos interlúdios poéticos, pequenos respiros entre as conversas. Antes de um primo começar a falar, a imagem foca nas paredes de uma casa na favela. Quando o depoimento da irmã ameaça versar no sentimentalismo, a câmera gira e procura um varal com roupas estendidas. Entram no enquadramento pipas no céu, um pai e um filho caminhando na praia e outros elementos que o diretor encontra pelo caminho. Esta poesia orgânica, obtida in loco, e não na pós-produção, reforça o olhar aguçado e o senso ético impecável do diretor em relação à história de Rafael.
Mataram Meu Irmão constitui um retrato excelente, com uso simples e inteligente da linguagem cinematográfica. O filme não explica ou expõe, como muitos documentários. Ele prefere bagunçar as peças, lançar hipóteses, deixando o espectador construir sua versão deste homem ausente, que impregna todas as falas sem estar presente nas imagens. Poucos filmes colocam o público em uma posição tão ativa, exigindo tanto de sua capacidade de interpretação, associação e julgamento. Por fim, esta produção versa menos sobre os fatos do que sobre a memória dos mesmos e o peso que adquirem com o tempo. Cristiano Burlan consegue, assim, representar o valor do afeto.