O homem por trás do presidente
por Francisco RussoGrandes personalidades da história sempre despertaram curiosidade, seja por seus feitos ou pelas características peculiares que os alçaram a tal posto. O suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 24 de agosto de 1954, é daqueles momentos que marcam a história de um país. Ainda mais se este for o Brasil, cuja fragilidade institucional fez com que duas ditaduras assumissem o governo em menos de quatro décadas. Entretanto, deixemos a história política à parte – por enquanto – para nos ater à figura de Getúlio. Ditador confesso, ele próprio admite ter rasgado duas Constituições enquanto esteve no comando, com o objetivo de manter-se no poder. Ao mesmo tempo, retornou à presidência do país graças ao voto, em pleno ato democrático. Tamanha contradição se reflete não apenas na oposição feroz, mas no próprio personagem título de Getúlio, o filme.
Mais do que dar uma aula de história, o diretor João Jardim está interessado é em conhecer melhor este homem que viveu posições tão antagônicas no momento de maior aflição de sua vida. O início do filme é emblemático: tela escura, a voz de Tony Ramos em off, assumindo logo de cara: “eu fui um ditador e não me arrependo”, com uma certa dose de rancor. Aos poucos seu rosto aparece, para que o público possa reconhecê-lo e, ao mesmo tempo, se acostumar com a caracterização facial. Apresentação feita, têm início as intrigas palacianas. As entranhas do poder são expostas naqueles 19 últimos dias de vida, através de negociatas e conspirações tramadas nos bastidores. Tudo para que o presidente caia, custe o que custar.
É bem verdade que, de início, Getúlio confunde. São muitos os personagens em cena e, por mais que sejam devidamente legendados para facilitar a identificação, leva algum tempo para que o espectador se situe em relação ao momento político. Apenas quando o núcleo principal é reduzido, com o filme deixando um pouco de lado os coadjuvantes, é que o thriller político realmente engrena. Ainda assim, chama a atenção a qualidade da direção de arte, seja através dos figurinos ou dos carros, e a fotografia mais escura, ressaltando o clima sombrio que paira sobre o presidente. O Palácio do Catete, local onde aconteceu boa parte das filmagens, é também figura importante na composição da necessária ambientação do círculo do poder nacional. Inclusive, é curioso notar que a câmera de Walter Carvalho por vezes se posiciona de forma que esteja escondida, como se flagrasse eventuais manobras ali tramadas.
Por mais que a história em torno do atentado ao jornalista Carlos Lacerda (Alexandre Borges, bem caracterizado) seja essencial, é na percepção sobre o lado pessoal de Vargas que está o grande trunfo de Getúlio. As reações do presidente a cada novo desdobramento da conspiração contra si revelam, pouco a pouco, um homem cansado, temeroso e convicto do que está por vir. São nuances sutis, demonstradas a partir de detalhes como o franzir da testa, ressaltadas pela bela atuação de Tony Ramos. Assim como acontece com Bruno Ganz ao interpretar Hitler em A Queda, ele compõe um Getúlio absolutamente humano, mais complexo do que a mera figura do presidente sob risco. Há ali também o pai de família e, acima de tudo, alguém que tem domínio do complexo jogo político que o cerca.
Por outro lado, Getúlio é também um filme que tem muito a dizer sobre a política feita no Brasil. Seja através de frases emblemáticas ou pelas próprias negociatas, muito do exibido em cena não é tão diferente assim do que acontece nos dias atuais. Não é preciso divagar muito para fazer uma oportuna comparação com o momento vivido pelo ex-presidente Lula durante a denúncia do mensalão, passando também pela influência dos meios de comunicação na cobertura dos fatos. É claro que são situações distintas, de desfechos muito diferentes, mas não é isto que está em questão. Trata-se do jogo político, do fazer o que é interessante para mim em detrimento do país, da onipotência que o poder continuado por vezes traz. Características que se perpetuam, independente de quem esteja no olho do furacão.
Por tudo isso, Getúlio é um filme que merece ser visto. Seja para conhecer um pouco melhor a história do Brasil - e compreender um pouco mais o atual status quo -, saborear a coesão do elenco em uma trama verídica de tensão crescente ou, apenas, conferir o homem por trás do presidente interpretado por Tony Ramos. Um belo filme com um desfecho doloroso, por mais que todos saibam de antemão como a história termina.