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    Chamada a Cobrar
    Críticas AdoroCinema
    1,0
    Muito ruim
    Chamada a Cobrar

    A mulher sem cabeça

    por Bruno Carmelo

    No drama argentino A Mulher Sem Cabeça, uma mãe de classe média-alta se descuidava ao volante e acabava atropelando algo, que poderia ser uma pessoa, um animal ou algum objeto na pista. Sem ter coragem de voltar ao local do incidente, ela passava seus dias remoendo a possibilidade de ter cometido um assassinato. Clarinha, em Chamada a Cobrar, precisa de menos do que isso para perder a cabeça: basta uma ligação anônima, sugerindo que sua filha foi sequestrada, para que ela pegue o carro e saia dirigindo durante doze horas, seguindo as ordens mais absurdas.

    Desde o início, está claro que a ligação representa um falso sequestro: os bandidos mudam de ideia sobre as instruções, nunca fornecem provas de terem a filha de Clarinha com eles, tampouco pedem resgate. Mas de fato, eles nem precisariam de tanto esforço: em momento algum Clarinha demonstra um mínimo de racionalidade. Ela não tenta ligar para a filha, nem para a polícia, nem conversar com quem quer que seja pelo caminho. Esta mulher de meia-idade age apenas com a emoção, acreditando em tudo que ouve.

    Isso é possível porque a protagonista é descrita como uma pessoa rica e ingênua. Com a duração enxutíssima de 72 minutos (o longa foi expandido a partir de um curta-metragem), a apresentação de Clarinha resume-se ao mínimo necessário: ela mora em uma casa luxuosa, tem jardineiros, toma café da manhã com castiçais à mesa e pendura um terço no vidro retrovisor do carro. A câmera insiste em focar neste terço, enquanto Clarinha grita “Pelo amor de Deus!” a cada trinta segundos, indicando que o roteiro provavelmente associa a credulidade no caso da fraude à credulidade religiosa.

    De qualquer modo, esta personagem é de uma imbecilidade atroz. Quando a voz do outro lado do telefone faz alguma referência à filha supostamente sequestrada, a mãe grita: “Dá uma maçã para ela, por favor! Ela gosta de maçã!”, como faria a um animal de estimação. A representação grotesca da riqueza (Clarinha tem um vibrador dourado em casa) completa-se com a representação grotesca da pobreza. O bandido corresponde à ideia mais estereotipada do favelado agressivo, enquanto a primeira imagem da cadeia recorre ao fetichismo dos filmes criminais, com a câmera observando os braços através das grades e a fumaça de um cigarro saindo da cela.

    Assim se configura Chamada a Cobrar: um embate entre a estupidez dos ricos e a astúcia dos pobres. O grupo rico é representado por mulheres histéricas (o momento com as três irmãs juntas beira o insuportável), o grupo pobre é representado por homens perversos, fazendo um teatrinho da pior qualidade. Para ajudar no festival de caricaturas, a mulher rica vem de São Paulo, enquanto o favelado representa o Rio de Janeiro. Planos aéreos servem para opor as duas cidades - e adivinha? O lado carioca é mostrado com crianças pobres e praia, o lado paulista é mostrado como um mar de arranha-céus.

    De certo modo, o elemento mais grave em Chamada a Cobrar é o fato de a diretora Anna Muylaert levar a sério a sua personagem, acreditando que a situação poderia realmente se desenvolver dessa maneira. A cineasta é conhecida por incluir elementos surrealistas em suas obras (vide o cavalo de Durval Discos), mas desta vez o surrealismo nunca é assumido como tal. Talvez cenas com bichos e pelúcia e armas de brinquedo pudessem levar o filme para a inverossimilhança assumida, mas o roteiro acredita que está realizando uma mistura realista entre drama e suspense. Assim, Muylaert usa câmeras tremidas e trilha sonora, como se estivesse gravando um filme policial hollywoodiano.

    Desta vez, infelizmente, ela não tem o distanciamento crítico que tinha nos bons Durval Discos e É Proibido Fumar. Bete Dorgam ainda tenta conferir alguma credibilidade à personagem, mas a história permite apenas que ela atue na máxima potência, sempre em desespero. A história ainda ameaça enveredar pela crítica social, com discussões entre bandido e vítima sobre salários e direitos dos pobres, condições hospitalares e outras mazelas da desigualdade social. Mas a possibilidade de um retrato da luta de classes transforma-se em humor involuntário quando Clarinha passa a chamar o suposto agressor de sua filha de “querido”, “meu filho” (seria o instinto materno aflorado?), acreditando até em uma simulação tosca de sua filha chorando ao telefone. Talvez o roteiro quisesse fazer de Clarinha um símbolo da classe A, mas o perfil patológico e tragicômico dessa mulher dificilmente representaria qualquer outra pessoa.

    Anna Muylaert sempre desenvolveu sua carreira com a mistura de gêneros, entre comédia, suspense e drama. Desta vez, no entanto, ela leva às telas um roteiro precário, além de contar com uma produção muito fraca, perceptível pela caracterização risível do delegado, ou pelos recursos simplórios da direção de arte ao revestir um orelhão. Chamada a Cobrar acaba sendo um filme amador, tão incoerente e ingênuo quanto Clarinha.

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