Possessão urbana
por Bruno CarmeloOs fãs de filmes de exorcismo já sabem que, nos cinemas, as forças malignas preferem atacar jovens mulheres, de preferência em cenários rurais ou isolados da cidade. As possessões costumam ter cunho sexual, transformando as mulheres dóceis em perigosas predadoras. Diante destas convenções, é uma surpresa ver que Livrai-nos do Mal se passa nas grandes cidades, mais especificamente nos bairros pobres americanos, onde os demônios atacam homens falidos, vivendo vidas miseráveis no interior de seus apartamentos minúsculos.
Em outras palavras, esta história tenta reunir o filme de terror com o filme policial, associando a figura do demônio à figura do delinquente social. Na trama, um policial agressivo e bruto (Eric Bana) começa a investigar diversos casos de pessoas com comportamentos estranhos, incluindo mulheres que jogam seus bebês aos leões dentro do jardim zoológico, e ex-soldados americanos que passam a agir como figuras animalescas. A premissa é original e bem-vinda, porque ao invés de explorar a ideia de pureza das jovens garotas, explora a decadência das figuras heroicas – os policiais, os soldados, as mães solteiras.
A fusão de gêneros e ideias, no entanto, não funciona tão bem quanto previsto. O tal demônio nunca sabe muito bem onde e quem atacar: ora o diretor Scott Derrickson insinua que as vítimas são os animais, depois mostra as forças do mal atacando objetos; às vezes esta força ataca as crianças, na forma de presenças invisíveis, em outros momentos transforma-se em algo poderoso e mortal, tendo como vítimas homens grandes e fortes. A ideia de mal é dispersa, tanto visualmente quanto narrativamente, o que explica a fraqueza do roteiro. Tradicionais símbolos satânicos misturam-se a frases em latim, mas na hora do exorcismo, esses demônios de bairros pobres também se comunicam em espanhol.
Derrickson aposta em ângulos inusitados para mostrar esta história, enquanto joga a maior responsabilidade pelo clima de terror nas mãos dos montadores e editores de som. Estes se divertem, sobrepondo todos os tipos de ruídos e cortes, tentando construir a história mais “suja” e perturbadora possível. O resultado é a saturação, com gritos misturados a uivos de animais e trilha sonora alta, tudo ao mesmo tempo. Nem sempre o excesso de som produz excesso de medo, e este filme é uma boa prova disto. Quanto aos outros aspectos técnicos, como a maquiagem... Bom, basta dizer que Livrai-nos do Mal certamente não será indicado ao Oscar na categoria.
No elenco, Eric Bana até se esforça, mas não consegue imprimir muita ferocidade a este homem supostamente bruto e traumatizado pelo passado. O ator nunca foi muito expressivo, e em um gênero marcado por emoções extremas, esta deficiência se torna ainda mais evidente. Joel McHale limita-se à construção cômica que já demonstrou em Ted e na série Community, já Edgar Ramírez faz uma espécie de padre galã, que bebe, fuma e faz sexo de vez em quando. O roteiro está cheio de personagens que infringem as regras tradicionais, porque a sobrevivência nos bairros desfavorecidos parece exigir este tipo de flexibilidade moral. Da mesma maneira, os traumas do policial também impedem que ele viva uma boa vida com a esposa e a filha pequena. Estas duas mulheres, como na maioria dos filmes de possessão, limitam-se ao papel de vítimas.
Por fim, Livrai-nos do Mal opõe seus dois homens principais, que lutam de maneiras diferentes contra as forças do mal. De um lado, o policial cético, contrário à ideia de forças do além, e do outro lado, o padre cool e pós-moderno, que trata pessoas possuídas como se fossem viciadas em drogas em necessidade de reabilitação. No início da trama, os heróis são soldados e policiais, mas rumo ao final, a verdadeira figura de autoridade é o padre, espécie de síntese ideal entre fé e razão, entre mundo terrestre e mundo espiritual. Para ajudar na identificação do público feminino e masculino, ele é bruto, sedutor e caridoso. O filme subverte um pouco as regras – do gênero, da moral cristã – para propor uma versão marginal e viril das histórias de exorcismo.