Bang bang à brasileira
por Lucas Salgado"Não tinha medo o tal João de Santo Cristo / Era o que todos diziam quando ele se perdeu / Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda / Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu." Estes são os primeiros de vários versos de "Faroeste Caboclo", obra-prima do rock brasileiro composta por Renato Russo e imortalizada pelo grupo Legião Urbana. São quase dez minutos de música, que tem começo, meio e fim, e por isso sempre foi cotada para chegar aos cinemas. A ideia levou vários anos para se tornar realidade, mas agora finalmente sai do papel.
Para a felicidade dos fãs da Legião, o resultado do filme Faroeste Caboclo é pra lá de positivo. Trata-se de um cinema de altíssima qualidade, com boa fotografia de Gustavo Hadba, direção de arte e ótimas atuações de um elenco quase todo formado por desconhecidos. É importante ressaltar para os fãs mais xiitas que não se trata de uma adaptação literal da canção. Ou seja, nem tudo o que vemos na tela está na música e vice-versa. Isso era inevitável, afinal trata-se de um longa com 100 minutos de duração. É possível, neste sentido, que algumas pessoas se incomodem com a mudança na construção da história, mas como adaptação é uma produção bem honesta e eficaz.
Fabrício Boliveira surge com muita força em cena como João de Santo Cristo, um sujeito que se muda para Brasília à procura de uma nova vida. Lá, encontra seu primo Pablo (César Troncoso), um traficante que logo lhe oferece um espaço em seu negócio. Ao lado do parente, ele começa a se envolver na venda de drogas na ala sul da Capital Federal, incomodando um bandido local chamado Jeremias (Felipe Abib). No meio de tudo isso, João conhece Maria Lúcia (Ísis Valverde), com quem começa a viver um grande amor.
Valverde, que é do elenco jovem é a mais conhecida, se sai muito bem. Além de linda, ela tem uma boa presença nas cenas que necessitam de certo talento dramático. Sua personagem perde um pouco a força no terço final, mas nada que comprometa seu desempenho geral. Quem também rouba a cena é Fabrício Boliveira. Ele está totalmente confortável neste personagem tão desconfortável que é João. O ator se entrega totalmente ao papel, surgindo ameaçador e também delicado, exatamente como sugere a canção.
O elenco conta ainda com as participações de Flavio Bauraqui, Antonio Calloni e Marcos Paulo. Bauraqui é quem se sai melhor do trio veterano. Ele surge em poucos momentos em flashbacks como o pai de João, mas é o suficiente para apresentar uma grande força dramática. Calloni tem um personagem um pouco mais caricato, que é o policial corrupto que persegue João. Ainda assim, se sai bem na função. Paulo também tem uma atuação mais discreta na pele do senador que é pai de Maria Lúcia. Este foi o último papel do ator nas telonas. Ele faleceu no final de 2012, vítima de uma embolia pulmonar.
O grande mérito de Faroeste Caboclo é contar uma história sem ficar preso à obra original. Isso em todos os sentidos, uma vez que a música também só surge nos créditos finais. Na verdade, em determinados momentos podemos ouvir alguns acordes, mas só. Outro ponto positivo está no fato do longa se assumir como um faroeste em várias cenas. Já na primeira sequência temos uma tomada dos olhos de Boliveira que remete diretamente à ícones do gênero como Lee Van Cleef e Clint Eastwood. As referências também estão presentes em tomadas no chão, que destacam os passos e a bota do protagonista, e da própria trilha sonora. Isso sem falar na Winchester-22.
Curiosamente, o filme chega aos cinemas na mesma época que Somos Tão Jovens, que conta a história de Renato Russo no início de sua carreira. Por mais que não seja uma cinebiografia, Faroeste Caboclo acaba falando mais sobre a Brasília dos anos 80 do que a outra produção. Aqui, vemos a cidade como um dos principais elementos da história, surgindo quase como um dos protagonistas. Vários cenários de Brasília são abortados e o longa se utiliza ainda de imagens de arquivo do clássico documentário Conterrâneos Velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho (que também dirigiu Rock Brasília - Era de Ouro).
Em sua estreia em longas, o diretor René Sampaio fez um bom trabalho, mas também cometeu alguns excessos comuns em primeiros filmes. O ritmo é um pouco desregulado, principalmente no início, que conta com duas grandes passagens de tempo em um período curtíssimo. Exageros à parte, se o filme continuasse naquela pilha teria uma duração menor que a música. Felizmente, a câmera pausa e a produção segue em frente. Outro ponto negativo é a trilha sonora instrumental, que aparece muito mais do que necessário, quase não oferecendo pausas para o espectador respirar. É algo tão evidente que as cenas que surgem sem trilha acabam sendo as mais bonitas.
Tido como uma canção "inadaptável", "Faroeste Caboclo" chega muito bem aos cinemas, oferecendo ação, romance e suspense. Tudo isso sem ser pudico ou esconder a realidade daquela juventude, regada à sexo, drogas e muita violência.