Arte transformadora
por Lucas SalgadoA obra de William Shakespeare já ganhou inúmeras adaptações para os cinemas. Na verdade, nenhum outro autor gerou tantos filmes como ele. São tantas, mas tantas versões que é impossível não ter a sensação de que a obra de Shakespeare já deu o que tinha que dar nas telonas. Aí surge um longa como César Deve Morrer para provar que tal sentimento era equivocado e que enquanto houverem boas ideias e diretores criativos não há porque não se investir em novas adaptações.
Dirigido pelos irmãos Paolo Taviani e Vittorio Taviani, César Deve Morrer acompanha a encenação da peça "Júlio César" por prisioneiros de um presídio de segurança máxima na Itália. Os cineastas acompanharam por seis meses a preparação para a montagem, mostrando ensaios, trocas de diálogos e até mesmo testes para o elenco. O registro é documental, mas a dupla também valoriza a narrativa e cria por si só uma versão da peça, servindo também como obra de ficção.
A produção é emocionante. Em determinada cena, um dos atores diz: "No momento em que conheci a arte, esta cela se tornou uma prisão." A sequência é bela e as palavras penetram no coração e na mente do espectador. Mostra o poder de transformação da arte e como a entrega a um personagem pode gerar uma atuação marcante independentemente do talento técnico de determinado ator.
Cada um dos intérpretes do longa é um prisioneiro de verdade e o filme não faz questão de esconder seus crimes. César Deve Morrer também não defende a inocência de qualquer um dos sujeitos ou perde tempo tentando dizer que foram curados pela arte. A atividade cultural muda aqueles homens, mas isso não significa que não voltariam a cometer os mesmos crimes se soltos.
A produção ratifica a abrangência da obra de Shakespeare e faz um belo estudo sobre as atitudes dos homens. As angústias de Salvatore Striano como Brutus, a delicadeza de Juan Dario Bonetti como Decio e a confiança de Giovanni Arcuri como César são alguns dos elementos mais curiosos do longa.
Nome consagrado no cinema italiano, responsável por clássicos como Último Tango em Paris e O Carteiro e o Poeta, o editor Roberto Perpignani faz um belíssimo trabalho no filme. Ele mescla cenas da montagem final, com ensaios nas partes externas e internas da prisão, passando sempre a sensação de continuidade à história. Também merecem aplausos os compositores Giuliano Taviani e Carmelo Travia, que compuseram uma trilha marcante e ao mesmo tempo bela. A fotografia de Simone Zampagni é outro elemento que merece reconhecimento. Ele une como poucos as cenas coloridas e em preto e branco.
Cesare Deve Morire (no original) conta ainda com trabalhos monumentais de direção de arte e design de produção. É impressionante como transformaram o ambiente claustrofóbico de um presídio em verdadeiros salões romanos. Você sabe que é uma montagem e que estão todos presos, mas por alguns instantes pode ver os homens serem transportados para uma nova realidade. E o mais emocionante é que, pelo visto, eles sentem a mesma coisa.