A eterna busca
por Francisco RussoAntes de falar sobre Ninfomaníaca, voltemos um pouco no tempo. Criticado mundialmente devido às declarações a favor de Hitler em pleno Festival de Cannes, durante a coletiva de imprensa de Melancolia, Lars von Trier se viu em maus lençóis ao ser declarado persona non grata no festival que, durante anos, serviu de palco para o lançamento de seus novos filmes. Em meio à polêmica, ele resolveu cutucar ainda mais: anunciou Ninfomaníaca, cuja história acompanharia a vida sexual de uma mulher da infância a velhice, com direito a cenas de sexo reais. Era o projeto ideal para aquele momento da carreira do diretor, já que permaneceria sob os holofotes da mídia graças ao tabu existente em torno da vida sexual da mulher - qualquer mulher - e, é claro, seu lado polêmico e incisivo, que possibilitava a crença de que ele realmente iria a fundo no projeto. É claro que, marqueteiro por natureza, von Trier soube conduzir esta fama com habilidade, fazendo com que crescesse cada vez mais a expectativa em torno do filme – ou filmes, como acabou acontecendo.
Contexto estabelecido, é importante dizer que Ninfomaníaca é um filme incompleto, pelo simples fato de ser uma história dividida em duas partes. Mas, ainda assim, encantador. Nem tanto pelo tema abordado, que acaba se tornando menor diante do que von Trier tem a dizer, mas especialmente pela forma como é retratado. É verdade que Ninfomaníaca traz várias cenas de sexo, de nudez frontal e algumas explícitas – com direito a penetração -, mas elas são apenas o meio através do qual a mensagem principal é transmitida: a busca em sentir algo, seja lá o que for. É esta eterna ambição que fez com que Joe tivesse sua sexualidade tão exacerbada quando ainda jovem. Da mesma forma, o não sentir algo fez com que se arriscasse cada vez mais, sem medir consequências, como se estivesse em uma busca ensandecida por algo vital que jamais encontraria – ao menos não da forma como sempre procurou.
Entretanto, é importante mais uma vez ressaltar, esta parábola é contada apenas parcialmente em Ninfomaníaca – Volume 1. É possível ver a Joe adulta (Charlotte Gainsbourg), encontrada cheia de hematomas abandonada em um beco e carregando um enorme fardo de culpa, e também a Joe jovem (Stacy Martin), inconsequente em suas aventuras sexuais, mas o que fez com que uma se transformasse na outra é algo que apenas o Volume 2 responderá. Fica no ar a pergunta crucial: o que fez com que esta mulher, que jamais se pautou por moralismos ou questões religiosas, assumisse de forma tão forte este sentimento de culpa, ao ponto de a todo instante repetir “sou um ser humano ruim”?
Ao longo desta trajetória, von Trier destila na tela algumas de suas características tradicionais: o humor afiado, extremamente sarcástico, que surpreende pelas insólitas comparações presentes no episódio O Pescador Completo e também por uma piada autorreferente sobre antissemitismo. O sadismo emocional do diretor também marca presença, especialmente na humilhante sequência estrelada por Uma Thurman no episódio Mrs. H., que em muito lembra o impacto emocional de Ondas do Destino. Assim como, mais uma vez, von Trier espalha ao longo do filme pílulas de uma cultura erudita com um certo acesso ao espectador comum.
Extremamente provocador – não apenas pelo tema mas também pelo formato, como demonstram os minutos iniciais onde o espectador é obrigado a aguardar o início tardio do filme -, Ninfomaníaca – Volume 1 encanta pela ousadia. Ao explorar um tema tabu, ao trazer uma profunda análise emocional sobre algo que poderia facilmente ser banalizado, ao fazer graça em momentos surpreendentes, ao tirar o espectador do conforto de sua poltrona. Ou por momentos tão sutis, como o breve sorriso sacana de Stellan Skarsgård ao vislumbrar o passado de Joe. Trata-se de um filme ambicioso que deixa uma expectativa enorme para o que vem a seguir, por mais que as cenas do próximo volume, presentes ao término da sessão, deem uma certa ideia do que acontecerá. Seu único pecado é o episódio Delírio, pela sensação de gratuidade que transmite em relação à história como um todo. Um grande filme, que exige que o espectador se dispa de preconceitos e moralismos para captar a essência da história - por mais que von Trier, ainda bem, adore uma boa polêmica.