O Estado contra o indivíduo
por Bruno CarmeloEm pleno ano de 2014, a adaptação literária sobre um adolescente lutando contra um governo totalitário necessariamente desperta comparações com Jogos Vorazes e Divergente, e O Doador de Memórias tem sofrido críticas por não possuir tanta ação, nem tanto romance, quanto esses rivais adolescentes. Mas seria injusto sustentar esta comparação, até porque a trama do livro “O Doador”, de Lois Lowry, está muito mais próxima da literatura social de “1984” e “Admirável Mundo Novo” do que das tramas pop e velozes concebidas para nova geração.
De fato, praticamente não há ação ou romance em O Doador de Memórias. Este é um drama de aspirações filosóficas complexas, levantando a questão do papel do Estado na sociedade como suposta forma de proteção do indivíduo contra si mesmo – em outras palavras, um debate sobre as origens do pensamento nazifascista. Obviamente, o filme tem proporções modestas, e nunca se torna um complexo debate de ideias, mas possui o mérito de observar todos os seus personagens com um curioso respeito: não existem vilões tradicionais aqui, apenas pessoas que tomam decisões questionáveis por acreditarem ser o melhor para a sociedade.
Na história, Jonas (Brenton Thwaites) vive em uma sociedade distópica onde os indivíduos não têm emoções, respondendo roboticamente aos comandos de um poderoso governo. As pessoas atuam na profissão escolhida pelos anciões, não fazem sexo (os bebês são criados artificialmente) e moram num mundo literalmente em preto e branco. Acima de tudo, os habitantes não têm memórias, de modo que apenas uma pessoa na comunidade é encarregada de guardar todas as lembranças do passado. Jonas é escolhido para a tarefa, embora possua um espírito rebelde e contrário ao sistema. Talvez esta estrutura faça sentido no livro original, mas na trama cinematográfica, é difícil compreender porque tamanha responsabilidade seria atribuída a um jovem claramente contestador, e porque o guardião de memórias experiente, mas igualmente subversivo (Jeff Bridges) nunca tinha pensado em divulgar as informações que possui.
Devido à falta de informação e ao contexto apressado (sintoma típico de adaptações literárias que tentam condensar muitos conflitos em pouco tempo), O Doador de Memórias exige certa credulidade do espectador. Sua trama é direta e funcional, e nenhum aspecto técnico se sobressai, positiva ou negativamente. O imaginário distópico, como na maioria dos casos, é associado a cenários minimalistas, abundância de aço e vidro nas casas e prédios, além da grande quantidade de produtos eletrônicos nos lares. Ou seja, o futuro catastrófico é visto como uma espécie de intensificação do presente.
Os atores se saem bem em seus papéis. Apesar de ter 25 anos de idade, Brenton Thwaites está acostumado aos personagens adolescentes, e consegue cumprir bem sua função na narrativa. Os experientes Jeff Bridges e Meryl Streep tentam equilibrar o caráter potencialmente caricatos de seus personagens: Bridges confere um tom amargo a este homem heroico, enquanto Streep acrescenta ternura à vilã. Mesmo Katie Holmes e Taylor Swift, que não são conhecidas por seus dotes dramáticos, desempenham bem suas simples personagens. Aliás, diversos personagens coadjuvantes são bastante rasos (incluindo os dois melhores amigos de Jonas), devido à escolha dos roteiristas Michael Mitnik e Robert B. Weide de concentrar todas as ações no protagonista.
Talvez o maior problema de O Doador de Memórias seja pertencer a uma espécie de limbo do mercado cinematográfico: ele é monótono demais para os padrões hollywoodianos, mas adolescente demais para o cinema de arte. O filme começa com imagens em preto e branco, algo muito ousado no circuito comercial, mas depois mantém uma estética colorida apenas funcional. Mesmo o esperado clímax funciona como uma espécie de anticlímax pela maneira pouco inspirada como o diretor Phillip Noyce conduz as cenas.
Muitas pessoas criticaram, com razão, a falta de vigor do cineasta. Ele aparenta possuir um texto potente e feroz em mãos, mas ter tomado a decisão de torná-lo mais palatável ao grande público. Talvez a sua versão represente uma oportunidade desperdiçada de fazer um verdadeiro filme político para as massas (um produto cada vez mais raro no mercado), mas para o público – jovem e adulto – que se aventurar por essa trama, certamente existe, diluída nas imagens, uma discussão muito mais interessante do que na maioria dos filmes de estúdio que chegam aos nossos cinemas.