Histórias de sobrevivência
por Bruno CarmeloEste suspense começa de maneira curiosa. O capitão Richard Phillips (Tom Hanks) está se preparando para mais uma viagem em alto mar, e conversa com sua esposa (Catherine Keener) sobre o estado do mundo. O diálogo é bastante genérico, com frases do tipo “Os tempos não estão fáceis” e “As coisas não são mais como antigamente”. Depois ele informa a esposa – como se ela já não soubesse – que o filho do casal precisa estudar, tomar um rumo na vida. Esta sequência meio artificial serve para apresentar a característica central do protagonista: a prudência. Phillips é um homem calmo, sensato, que reflete antes de agir.
Ele deve enfrentar outro capitão, somaliano, com personalidade contrária à sua. Muse (Barkhad Abdi) é um garoto impulsivo, inexperiente, mas muito determinado. Sua apresentação é igualmente sucinta (ele esfaqueia um colega após uma brincadeira banal). O roteiro não faz questão de esconder o encontro iminente entre os dois, incluindo desde os primeiros minutos informações sobre o grande número de ataques piratas na região por onde deve passar Phillips, e depois abandonando o americano para revelar Muse e sua pequena equipe se preparando para o ataque. Esta é uma primeira boa surpresa de Capitão Phillips: o filme não adota apenas o olhar do herói, vendo seus inimigos do exterior, como na maioria das tramas de guerra. O roteiro dá espaço aos dois capitães, enxergando o mundo pelos olhos de cada um.
Seria muito fácil retratar os somalianos como grandes vilões (afinal, são eles os agressores, são eles os homens armados) e a tripulação americana como bondosas vítimas. Felizmente, Phillips e Muse são mais do que isso: trata-se de dois homens preocupados com a sobrevivência de si próprios e de seus homens, e que não hesitam em atacar o inimigo quando necessário. A história humaniza os piratas, desenvolvendo uma personalidade distinta para cada um. Muse é repleto de cinismo e objetividade durante a agressão (“São apenas negócios”, “Tudo vai ficar bem”, ele repete), mas nunca age por simples maldade. Os motivos que impulsionam o confronto dos dois são econômicos: Muse precisa de dinheiro, e Phillips está transportando uma carga de comida e mercadorias. Os dois executam ordens de seus superiores, e pretendem desempenhar seus planos da melhor maneira possível.
O diretor Paul Greengrass já tinha avisado que Capitão Phillips seria uma reflexão sobre “as consequências da globalização”. Embora o termo pareça genérico, é perceptível o objetivo de inserir a história no contexto socioeconômico atual. Este tema poderia parecer pouco comercial, mas Greengrass embala a trama com os traços estilísticos que fizeram a fama de A Supremacia Bourne (2003) e Vôo United 93 (2005): a câmera na mão, tremendo durante as cenas de suspense, a montagem ágil e fragmentada, a luz natural para conferir maior realismo, o trabalho rico na captação de som direto e a trilha sonora pulsante, com uma percussão que domina a maioria da narrativa. O filme é um ótimo exercício de ritmo, fazendo as 2h14 parecerem curtas para tantas reviravoltas, confrontos e cenas de tensão.
As atuações são outro ponto forte do filme. Tom Hanks evite a construção idealizada do herói, compondo um personagem marcado por inseguranças, gestos simples e uma maneira tranquila de falar. O ator ainda ganha de presente uma “cena de Oscar”, aquele momento de grande dificuldade dramática rumo à conclusão, que permite ao personagem liberar toda a emoção contida até então. Hanks se sai muitíssimo bem nesta cena, e as premiações devem recompensá-lo pelo esforço. Já o desconhecido Barkhad Abdi fornece uma atuação surpreendente, complexa, cheia de nuances no olhar, nos gestos e na fala. É notável a maneira como Muse transita entre humor, cinismo e agressividade, e Greengrass parece ter percebido isso, aproximando sua câmera do rosto do ator sempre que tem a oportunidade.
Rumo à conclusão, a trama infelizmente recorre ao patriotismo exacerbado – a equipe de resgate americana é extremamente eficaz e politicamente correta, mostrando toda a destreza militar dos Estados Unidos – e ao sentimentalismo, com direito a cenas de assassinato interrompidas por pessoas que gritam “Diga à minha família que eu os amo!”, enquanto violinos melodiosos ocupam o lugar da percussão. Os letreiros da conclusão também seguem a cartilha das biografias tradicionais, tentando mostrar imparcialidade e veracidade histórica. Talvez Capitão Phillips não consiga encontrar um desfecho à altura da complexidade de sua trama. Mesmo assim, Paul Greengrass conseguiu elaborar um produto de altíssimo nível, com boas atuações, construção técnica impecável e uma articulação inteligente entre estética e temática, capaz de dialogar tanto com o grande público quanto com a crítica.