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    Fausto
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Fausto

    Transtornos de corpo e alma

    por Bruno Carmelo

    O cartaz de Fausto mostra um desenho, que sugere discretamente um corpo feminino e inscreve tanto o título do filme quanto o nome do diretor sobre o púbis. Esta imagem representa bem o que se verá em seguida: um filme autoral, onde o nome do diretor tem maior destaque do que o dos atores, ou mesmo de Goethe – autor do texto original – e uma adaptação particularmente concentrada no corpo, mais do que na alma.

    Vale lembrar que, no original, Fausto discorre sobre o orgulho, através da história de um médico que vende sua alma ao diabo em troca de reconhecimento social. A maioria das representações mais fiéis deste texto, que vão do terror ao drama de época, levou ao pé da letra a simbologia e representou um Mefistófeles com dois grandes chifres, além de um Fausto detestável e arrogante. Mas o diretor russo Alexandr Sokurov prefere um protagonista mais perturbado, em busca de reconhecimento pessoal de sua masculinidade e de seu amor, e não tanto da admiração da pequena comunidade onde vive.

    O médico desta adaptação sonha em possuir a jovem garota que ama, ao mesmo tempo em que seu ajudante nutre uma admiração homoafetiva por ele – e ambos geram juntos um bebê simbólico, um homúnculo. Nesta versão, as torturas da alma são indissociáveis do corpo: os personagens sofrem por desejos sexuais não concretizados, por autópsias que não funcionam, por dores abdominais tão fortes que podem levar ao orgasmo. Os espaços do vilarejo são amplos, mas as pessoas estão sempre se trombando, se esfregando, se cruzando, se acoplando. Já o diabo, mais terreno do que infernal, transforma-se no proprietário de uma loja de penhora de bens. Sem chifres, ele lembra mais uma espécie de palhaço sarcástico, com o corpo deformado e – ultraje máximo – um micro pênis colado à parte traseira do corpo.

    Para combinar com esta percepção sensorial do mito de Fausto, Sokurov traz uma estética particular, nada "bela" segundo as normas vigentes tanto para os filmes comerciais quanto para as produções "de festivais". A imagem é esbranquiçada, sem contraste, com lentes distorcidas. A câmera instala-se entre os embates dos corpos, fazendo deles miragens, algo entre o sonho e o pesadelo. Assim, a fábula não é construída pelo cenário transcendental, e sim pelos distúrbios muito materiais de pessoas comuns. O personagem Fausto torna-se menos exemplar, menos arquetípico, mas ao mesmo tempo mais humano e realista – e esta grande concessão à obra de Goethe será provavelmente a maior razão pela qual os fãs do texto original poderão adorar ou detestar o filme.

    Por fim, neste eterno purgatório onde transitam seres perdidos, o filme poderá ser pouco agradável, e um tanto longo (2h15 de duração). Mas tanto esta adaptação quanto o material original pretendiam ser um conto sombrio e perturbador, exigindo um esforço do espectador/leitor ao invés de entretê-lo. O Fausto de Sokurov não é exatamente hermético, já que ele lida com o imaginário coletivo do sexo e do desejo, mas ele investe na duração e na distorção para criar um ambiente único, uma espécie de releitura estética de um texto filosófico. Uma bela adaptação e um singular exercício de cinema.

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