Infância 2.0
por Bruno CarmeloAs lendas infantis, como o Coelho da Páscoa e Papai Noel, têm uma função social muito específica: elas ensinam às crianças algumas regras sociais básicas, dando razões para serem gentis e obedientes – afinal, estas figuras aparecem como privilégios, e não direitos (elas só vêm se a criança for boazinha, se tiver estudado etc). Isso ocorre até elas crescerem um pouco e perceberem que não precisam mais destas lendas, porque existem outros códigos que as forçam a terem bom comportamento (as leis, a religião, a moral). Assim, abandonar o Papai Noel é tão importante quanto esquecer um amigo imaginário ou testemunhar a morte de um bicho de estimação: são lutos simbólicos que permitem a entrada na vida social.
A animação A Origem dos Guardiões parte do princípio que as crianças de hoje param de acreditar nestas figuras muito cedo, e que por isso perdem também sua pureza, e aquela inocência que os adultos costumam imputar aos pequenos. Por isso, é preciso usar de muita retórica e muita tecnologia para convencê-los a "acreditar no invisível". Mas como fazer a criança atual, com fácil acesso a imagens adultas (sexo, violência), acreditar no bom velhinho que distribui bilhões de presentes em uma mesma noite?
A primeira solução encontrada foi atualizar a mitologia. A simples bondade não vende mais, por isso nossos personagens são lutadores, ferozes, ágeis, voadores. Papai Noel, o Coelho da Páscoa, a Fada do Dente, Sandman e Jack Frost defendem as crianças com pontapés e muitos efeitos especiais. Agora o trenó do Papai Noel é um veículo potente, o Coelho da Páscoa é um tipo viril que se defende com bumerangues, e o capitalismo é abraçado sem medo: Papai Noel e o Coelho da Páscoa são chefes autoritários de imensas fábricas de presentes e ovos, respectivamente, isso sem falar na Fada do Dente, que encoraja as crianças a trocarem uma parte do corpo por dinheiro.
A importância que esses mitos desempenham também ganha novos contornos: embora os ícones infantis nunca sejam indispensáveis para a vida das crianças (muitas vivem sem elas, e conseguem superar a perda quando descobrem que não são reais), a trama apresenta-os como necessários. No filme, os pequenos dependem da ajuda dos guardiões para não terem pesadelos e, eventualmente, para serem felizes. Mesmo o dente levado pelas fadas, um objeto perfeitamente inútil, ganha uma importância essencial: é ele que guarda as memórias de infância.
Assim, A Origem dos Guardiões consegue ser um filme ao mesmo tempo ultra moderno e neoconservador: por um lado, ele adota uma embalagem colorida, hiperativa, com voos pelos ares, 3D ostensivo e hologramas representando sonhos e pesadelos. Por outro lado, ele defende um retorno à inocência infantil, à bondade a qualquer preço, mesmo que para isso seja preciso uma boa dose de violência e capitalismo tão caros aos americanos.