A biografia inventada
por Bruno CarmeloSempre existiu uma grande curiosidade em torno dos gênios. Como Picasso criou formas tão inovadoras? Como Mozart conseguiu desenvolver uma música tão complexa, ainda criança? O que levou Pina Bausch a pensar em coreografias tão diferentes das outras existentes? Vários filmes já tentaram responder a essas perguntas (O Mistério de Picasso, Amadeus e Pina, respectivamente), e Hitchcock corresponde à tentativa cinematográfica de entender como o cineasta britânico criou Psicose, uma obra-prima do terror e do suspense.
Ao invés de adotar um tom biográfico sério, o diretor Sacha Gervasi preferiu fazer uma mistura de gêneros, entre comédia (as tiradas sarcásticas do diretor), drama (seus problemas de saúde, a dificuldade em produzir Psicose), romance (sua relação com Alma Reville) e mesmo suspense (as angústias e impulsos eróticos do protagonista). Esse encontro de estilos é responsável pela maior qualidade e pelo maior defeito do filme: por um lado, esta é uma história agradável e inesperada, por outro lado, seu valor como documento é bastante limitado.
Assim, são compreensíveis as diversas críticas negativas que o filme recebeu. O maior argumento dos detratores se dirigiu à mistura entre realidade e ficção, fatos e invenções. Gervasi filma da mesma maneira acontecimentos verídicos (Hitchcock comprou todos os livros "Psicose", para que ninguém soubesse o final; ele hipotecou a própria casa para pagar pela produção) e cenas que apenas supõem o que se passa na cabeça do diretor (sugerindo, por exemplo, que ele espiava suas atrizes nuas por um buraco na parede, e que tinha alucinações). É bastante incômodo sair de um filme biográfico sem poder acreditar no que acabamos de ver em tela.
Na falta de um tratamento biográfico sólido, Gervasi adota a personalidade do cineasta como ponto de partida para uma história abertamente fictícia. É absurda a cena de sua esposa dirigindo uma cena no lugar do marido, enquanto ele está doente, e os momentos de Hitchcock pensando em matá-la são ainda mais inverossímeis. O filme supõe que a personalidade de seu autor é idêntica à sua obra, portanto, um diretor fascinado por mortes também deve ser um homem com impulsos assassinos. É uma hipótese precária do ponto de vista psicológico, mas fértil no terreno da ficção. Se o espectador aceitar desde o início que as imagens não pretendem contar a verdade, apenas uma versão fantasiosa dela, há muito que aproveitar em Hitchcock.
Isso porque as circunstâncias da produção de Psicose são de fato singulares. A maioria dos cinéfilos já viu muitos filmes, mas ignora os bastidores comerciais e burocráticos das produções. Neste sentido, Hitchcock lembra o interessante funcionamento dos estúdios e dos órgãos de censura – por exemplo, na época o diretor sequer tinha autorização legal para filmar um vaso sanitário. Também chama a atenção a escolha de atores tão conhecidos hoje (Scarlett Johansson, Jessica Biel) no papel de atores e atrizes ainda mais conhecidos antigamente (Janet Leigh, Vera Miles), estabelecendo um curioso choque de gerações.
Já as muito comentadas atuações de Anthony Hopkins e Helen Mirren caminham em sentidos opostos. Preso à figura e silhueta tão conhecidas de Hitchcock, Hopkins tem maior preocupação em parecer real (com a cabeça inclinada para trás, as palavras pronunciadas sí-la-ba-por-sí-la-ba) do que em conferir profundidade emocional ao personagem. Mirren, por sua vez, interpreta uma figura muito menos conhecida pelo público, tendo mais liberdade para desenvolver uma mulher cheia de vida, embora doce e cooperativa – distante dos papéis autoritários que costuma fazer nos cinemas. As cenas de romance entre Alma e Whitfield Cook (Danny Huston) podem ser os momentos mais fracos e entediantes de Hitchcock, mas a cena em que ela briga com o marido, relembrando seu apoio ao longo de décadas, mostra o talento espetacular de Mirren.
Por fim, Hitchcock é uma produção irregular, decepcionante para o espectador que estiver esperando uma biografia comum. Quem quiser conhecer mais sobre o processo criativo do cineasta pode ler as ótimas entrevistas registradas no livro "Hitchcock/Truffaut", por exemplo. Mesmo assim, a postura adotada pelo filme de Gervasi tem o seu valor, porque interpreta Hitchcock como persona, como figura popular, moldada pelo imaginário coletivo, para quem a fronteira entre fato e ficção sempre foi muito tênue. Mais do que retratar a vida de um homem, Hitchcock se diverte ao reinventar um mito.