Minha conta
    Lucy
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Lucy

    A mulher total

    por Bruno Carmelo

    Nos últimos anos, o diretor e produtor francês Luc Besson tem se especializado em produções hollywoodianas de orçamento limitado, e ambições ainda mais limitadas. Com a franquia Busca Implacável, ele reproduziu pela enésima vez a trama do pai que deve resgatar a pobre filha sequestrada. Em Além da Liberdade, fez mais uma história melodramática de superação em um país pobre. Em A Família, seguiu à risca os códigos dos filmes de máfia. Diante de tamanha falta de vigor na direção, as perspectivas para Lucy não eram nada boas. Aí vem a surpresa: este é um filme empolgante com reais ambições, tanto artísticas quanto comerciais. Ou seja, algo que Besson não fazia desde 1997, com O Quinto Elemento.

    O que existe de tão fascinante em Lucy é o fato de conseguir combinar a mitologia dos filmes de ação com aquela das histórias em quadrinhos. A protagonista (Scarlett Johansson) é uma super-heroína, mas ao invés de ter poderes seletivos – como a invisibilidade ou a capacidade de voar, por exemplo – ela tem todos os poderes possíveis. Graças a um acidente envolvendo uma droga sintética, Lucy passa a desenvolver o seu cérebro, e logo pode controlar tudo e todos ao redor. (Ou seja, as drogas podem ter efeitos muito positivos, crianças, mas não tentem isso em casa). A perspectiva de um personagem capaz de tudo pode ser completamente absurda em termos de roteiro, mas poderosa em termos de imagem.

    Lucy não vive em um mundo paralelo, do futuro, ela não é particularmente inteligente ou bem intencionada. A jovem é escolhida acidentalmente por um grupo de mafiosos, nos dias de hoje, e parte em busca de uma vingança por motivos puramente pessoais: a personagem não quer livrar o mundo do tráfico de drogas, ou dos homens malvados, apenas fazer um experimento extremo em si mesma, o que a leva a procurar e roubar a tal droga sintética de diversas pessoas. Lucy é uma dessas mulheres vingadoras e fortes, uma heroína sem caráter, como era a fascinante Viúva de Kill Bill, por exemplo. Ela é uma das únicas personagens femininas em toda a trama, superando todos os homens em inteligência e competência.

    O que se segue é uma sucessão absurda e inventiva de momentos de ação. Todo mundo já viu tiros e perseguições antes, mas essa história faz uma representação inédita da ação: ao invés de atirar nos bandidos, Lucy desarma-os com o poder do pensamento; ao invés de superá-los com socos, ela gruda os malvados no teto (!) com um pequeno gesto das mãos; ao invés de colidir com carros e gerar explosões, ela faz com que eles capotem sozinhos no meio da rua. O roteiro manda às favas o naturalismo e explora com uma alegria sincera o potencial deste grande videogame. A narrativa é veloz e enxuta, investindo na trajetória de progressão – o percentual de desenvolvimento cerebral da protagonista aparece na tela, cada vez maior. O que vai acontecer quando Lucy chegar a 100% do seu cérebro?

    Luc Besson parece realmente investido neste projeto. Ele coloca música pop rock nas perseguições de carros, e logo depois usa trechos de música clássica (os mesmos do intelectualíssimo Ninfomaníaca, de Lars Von Trier) para mostrar a protagonista observando a seiva de uma árvore percorrendo cada parte do tronco e das raízes. Lucy consegue ser sério às vezes, hilário em outros momentos, e quem diria, até poético e comovente em alguns instantes. Algumas imagens do cosmos beiram a paródia, outras fazem referência à estética transcendental de Terrence Malick. O resultado, obviamente, é uma bagunça surpreendente, consciente de seus excessos, sem medo de desagradar. Lucy constitui, desde já, um pequeno clássico trash, um roteiro de filme B revestido de uma embalagem hollywoodiana.

    Quanto às pretensões metafísicas, à discussão sobre a capacidade do ser humano, da relação entre o tempo e o espaço, ela não passa de um mero pano de fundo para atribuir verossimilhança à história. Ninguém em sã consciência consegue acreditar na complexidade daqueles dados científicos. Tudo é obviamente falso, mas o filme distorce regras da ciência para imaginar uma ficção – constituindo, assim, uma ficção científica por excelência. Os discursos do grande intelectual Norman (Morgan Freeman) são simplórios como uma revisão de cursinho pré-vestibular, os seus dados apresentados em Powerpoint não convencem ninguém. Mas Besson inclui comentários cômicos, inserts sobre o reino animal, que reforçam o caráter humorístico dessa ciência estapafúrdia: não, Lucy não se leva nem um pouco a sério. E para quem ainda tiver dúvidas, o ser humano não usa apenas 10% do seu cérebro, como afirma a premissa do filme.

    Quem também merece os parabéns por este filme é Scarlett Johansson. A atriz poderia se contentar com a fama e o salário obtidos em grandes filmes de ação, em estilo Os Vingadores, mas continua buscando papéis exigentes, difíceis, a exemplo do sistema operacional em Ela, da alienígena devoradora de homens no cult-trash Sob a Pele, e agora dessa espécie de mulher total, herdeira da primeira mulher da história, também chamada Lucy, e equivalente a uma deusa entre os humanos (“Eu estou em todos os lugares”, ela diz). A atriz se sai bem em todos esses papéis, lida com os projetos com grande comprometimento, e constrói com detalhes a progressão entre a Lucy inicial e as demais, com diferentes porcentagens da capacidade cerebral desenvolvida. Johansson confere vida a este pequeno projeto coerente, insano e divertido, marcado por uma saudável vontade de trazer algo diferente aos blockbusters de ação e ficção científica.

    Quer ver mais críticas?
    Back to Top